Uma vida em jogo (Por Mauro Jácome)

116 - 01122013 - Uma vida em um jogo

Aquele som incômodo vindo do outro lado entrava pelos ouvidos e chacoalhava a cabeça. Nada mais estava no ambiente senão aqueles gritos. Paradoxalmente, alegres com as tristezas. Não tão fortes quanto os que, algum tempo atrás, saiam dos pulmões deste lado de cá, mas eram dilacerantes. Fui subindo pelos degraus lenta e pesadamente. Cada passo era arrastado, como se tivesse pesos amarrados aos tornozelos. Afastando-me, os sons diminuindo, um Bolero de Ravel ao contrário. Em meio à multidão, anônimo. Saí diferente do que cheguei…

Aquele dia começara cedo. Sete horas, meu pai me acordara. Como de costume em dia de grandes eventos, tudo começava num tempo diferente. Era necessário aproveitar o máximo do dia, desde os primeiros minutos. O café, a banca, os jornais. Comprometer-se com tudo que se relacionasse com a importância do dia.

A manhã arrastava-se, a ansiedade crescia. Na vida de uma criança não havia outras preocupações. Aliás, sequer havia preocupações. Só se pensava em sair de casa, de mãos dadas com meu pai, rua abaixo. As bandeiras, os gritos, os ritmos e os foguetes tornavam-se fortes, a tal ponto que era difícil discernir qualquer som que se dirigisse a mim. Os bares lotados ainda estavam longe de invadir aquelas cadeiras coloridas.

Chegar cedo mostrava muitas coisas que não se percebe depois: as famílias e seus inúmeros formatos, qualidades, defeitos; as constantes trocas para achar o lugar perfeito; as histórias recentes das vidas alheias; uma descontração que, em breve, daria lugar à tensão desmedida.

Dos túneis escorria gente para as cadeiras que, aos poucos, sumiam. Aumentava a movimentação e os olhos, que vagavam difusos pelo ambiente, direcionavam-se para o campo verde. O ritmo aumentava, a proximidade do apito inicial fazia com que tudo se harmonizasse para que milhares de vozes tornassem-se um canal único de comunicação com os nossos guerreiros.

Uma pipoca, um refrigerante. O que mais uma criança quer. Observava a alegria de meu pai em meio àquela multidão. Ele era uma multidão em si. Eu era seu discípulo. Ainda faltava muito a aprender. Um dia, eu seria muitas vozes em uma. Hoje, ainda era só uma criança.

A derrota, o empate, a vitória, o empate fazem parte dessa história. Em outros momentos, seria só mais um jogo. Um jogo que seria esquecido em meio a outro, a outro, a outro. Hoje, não. Não era um qualquer. A vitória era necessária. Não queria romper a união entre ele e mim. Não queria voltar só. Para tal, a vitória era necessária.

Nem sempre as coisas acontecem como se quer. Algumas vezes, o destino caminha sem que sejamos capazes de conduzi-lo para aquele invariável final feliz das novelas. Não somos só nós que escrevemos nosso próprio livro. Muitas mãos se fazem presentes.

Ninguém queria ouvir aquele apito final. Não antes de mais um gol. Mas não veio. Eu não queria me tornar adulto. Queria viver no mundo da fantasia, sem realidade. De repente, tudo se transformou. Eu cresci num inimaginável espaço de tempo. Não havia ninguém ao meu lado. Ninguém que eu pudesse reconhecer, segurar na mão, proteger-me da verdade que gostaría de desmentir.

Saí diferente do que cheguei. Era, sim, um adulto. Não tinha mais o short, aquela pequena camisa, a pipoca, o amendoim, o refrigerante. Era um adulto e estava só. Misturado a milhares de seres cabisbaixos. Não mais achava intrigante a razão de tanta tristeza. A verdade é que ele não estava mais comigo pelas escadas, rampas, calçadas, ruas, esquinas. Não havia mais ninguém comigo além daquela massa silenciosa, triste, chorosa, humilhada, pensando num futuro que, mais cedo ou mais tarde, vai ser rejeitado como passado. Todos os pés se arrastavam, um ou outro chutava algo jogado ao chão. Eu junto. Adulto, mas só.

Pré-revisão: Rosa Jácome

Panorama Tricolor

@PanoramaTri @MauroJacome

Foto: fmanha.com.br

Revisão preliminar: Rosa Jácome

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7 Comments

  1. Cara, que sensibilidade! Busquei forças no meu falecido pai, que algumas vezes me conduziu ao Maior do Mundo, mas como você disse, nossos destinos são feitos a muitas mãos. Que essas mãos ainda escrevam-nos um final feliz para essa história.

  2. Se ficar na série A, tudo bem. Se cair, serão bem vindos também. O mais importante é alegria do futebol.

  3. Mauro, brilhante e emocionante. Saudações Tricolores e vamos secar muito hoje.

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