Tropicália tricolor (por Paulo-Roberto Andel)

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Na Guanabara do século XXI – mais precisamente em 2016 -, menos conhecida do que a rede de supermercados de mesmo nome, o Fluminense está todo prosa. Depois de anos sem viço, destrambelhados, eis que o imortal club das Laranjeiras dá sinais de que pode alçar grandes voos nesta temporada. As expectativas já apontam para a fase final do Campeonato Carioca e a decisão da Primeira Liga. O Tricolor está com a bola cheia, especialmente depois da chegada do treinador Levir Culpi. Viva a bossa, viva a palhoça, viva o amor das três matizes que já produziram lágrimas de sangue e orgasmos de alegria.

A torcida do Fluminense faz questão de mostrar sua paixão. Assim tem sido há muito tempo e, pelo visto, continuará. O bom momento dentro de campo reacende esperanças, desafia definições e também causa situações que beiram o inusitado.

Zac, um cão salsicha de Copacabana, costuma ser levado regularmente ao calçadão da praia pelo seu dono, o Sr. Boilesen. Sempre veste um macacão tricolor que possui um enorme e belo escudo do Fluminense. Com suas pequenas pernas e patas, caminha tranquilamente pelo piso de pedra centenário enquanto o dono é que se esfalfa ao acompanhá-lo. Sr. Boilesen, se me entendem, é mais um dos cadáveres vivos à espera do cadafalso da avenida litorânea.

Dois craques do football de areia – não confundir com beach soccer – e notórios maconheiros – encostados numa trave perto da avenida Princesa Isabel em plena tarde de sexta-feira, ambos vestidos com o manto sagrado das três cores do futebol – um deles com uma camisa oficial; o outro, não. Cochicham, apertam as mãos em atitude down by law – ou low life – e um diz para o outro: “VAMO FALAR COM O ARTHUR, BROTHER!”. Os dois sorriem enquanto o travessão corta uma pequena nuvem de fumaça acima das cabeças quase ativas: “PÔ, BROTHER: QUE ONDA ALUCINANTE! VAI, FLUZÃO!”

Atravessando a zona sul e chegando até o centro da cidade, numa das esquinas da rua do Senado há um bordel decadente onde a CEO Kelly dá as cartas no comércio do sexo local. Traduzindo: cafetina. Loura adaptada, pernas grossas, talvez um metro e sessenta de altura, parece ter mais do que os supostos vinte e cinco anos de idade. Não bastasse ser fanática pelo Fluminense, volta e meia é vista com a camisa do clube no botequim anexo à escadaria de tapete vermelho que leva ao seu ambiente de trabalho: um sobrado do amor. A indumentária não deixa dúvidas: microshort jeans e salto alto, celular num dos bolsos e o maço de cigarros no outro. Na batata da perna direita, reluz um belo escudo do Fluminense, saltitando na carne desejada e de fácil acesso. Kelly é valente, guerreira tricolor. Gostosa. Crua.

O Fluminense é indomável. É Charlie Mingus, o gênio do jazz, dentro do estúdio Impulse, gritando para os músicos: “Ninguém olha para ninguém. Todos de costas. Vamos sentir a música”.

Ah, Fluminense, que dorme em berço esplêndido de ambientes marginais, vulgares mas também em casas confortáveis e luxuosas – o escritor Valterson Botelho tem um Romanelli inspirado no Fla-Flu, numa sala onde se pode apreciar toda a beleza do Atlântico Sul beijando a orla de… Copacabana – outra vez!

Arismar Leite mora em Belford Roxo, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Vive numa casa humílima, com pequena pensão. Problemas de saúde o levaram a ter as duas pernas amputadas. Todas as suas dificuldades ficam de lado quando liga o ratinho de pilha e escuta sobre o Fluminense, especialmente nos jogos e nas notícias, muitas vezes narradas pela bela repórter Carla Matera, que é um dos símbolos da nossa torcida – NOSSA – ENTENDEU BEM O FILHADAPUTA? Arismar é apaixonado pelo Fluminense há mais de meio século. Viu Castilho, Pinheiro, Altair e mais duas dezenas de heróis tricolores em campo. Não importa a distância e a cadeira de rodas: sempre que pode, vê o Flu em estádios.

O Fluminense não cabe num blog, numa biblioteca, numa revista de fofocas, nem na sede das Laranjeiras. Três cores que abrem os braços e a gente faz um país, não uma Casa Grande.

Esse Fluminense burn to shine, que mora em rock e xote, que dança em respeitáveis clubes e quadras de favelas, que já deu bom dia a sinhá, viu réstias de senzala e já dormiu abraçado em lençóis elegantes do Alto Leblon. Já seduziu analfabetos geniais e admiráveis, alimentou páginas de grandes jornais e inspirou livros de vida ou morte – às vezes enchendo outros analfabetos, estes rudes, de raiva e rancor porque a inveja é a celebração da própria ignorância. Tom Jobim era Fluminense, ainda é. Délcio Carvalho também é. O poeta Chacal com seus versos diretos e transatlânticos. O Fluminense rugiu nas lentes de Saraceni e Mário Carneiro, cultivou malandros e donzelos, seduziu machões e grandes bichas descoladérrimas. Rastejou em palafitas e mergulhou em seu aquário natal: a piscina do Copacabana Palace – COPACABANA DE NOVO – GUINLE!

Fluminense é verso livre e poesia marginal. Livro de bolso, favelost e lira do delírio. Prova de amor no Central Park também.

O socialite Chiquinho Zanzibar, branco, de bem, representante de uma linhagem de quatro centenários, reacionário até a morte, chega em casa depois de se deliciar com um garotão da Farme, chegando a sonhar com o tricolor Burle Marx e o aconchego secreto que, um dia, apelidou de “Pecadópolis”. Pensa nas contas, nos negrinhos que agora entram como querem na imponente sede alva da rua Álvaro Chaves, respira fundo de nojo e sonha com a morte da jornalista Alva Benigno, que tem devassado suas estripulias para os leitores de 360 graus. Liga a televisão, senta-se numa poltrona kistch, procura um canal de TV que derrube sua ansiedade homoerótica, ouve perto das janela a conversa de dois travestis com o motorista de um carro importado, depois desiste de tudo para tomar um banho, colocar robe e pantufas até desmaiar de sono e sonhar com um novo bofinho.

O Fluminense bate forte em peitos viris, flácidos, maduros ou provocantes – qualquer um. Povoa o imaginário de milhões de brasileiros, sejam eles desdentados, milionários, proletários, intelectualizados, ateus, católicos, espíritas, feios, feiosos – o Frankenstein da internet quer ser famoso! -, belíssimos – Letícia Spiller! -, gentes humilde, outras nem tanto e a riqueza humana do clube é tamanha que um torcedor flanelinha se chamou Cartola. No peito dos desafinados também bate um coração, e também no dos desesperados, feito aqueles que viram – MESMO – o gol de barriga. O Fluminense é foda.

Nas mentes brilhantes e nos bicos intumescidos, nos grandes romances e nas inebriantes sacanagens. Esse Fluminense, voo rasante pelos caminhos inexplicáveis da alma.

Médicos, engenheiros, ambulantes, mendigos, crackers, golfistas, banqueiros, traficantes, maquinistas, bombeiros, marinheiros, advogados. Garotas de programa, freiras, ginastas, colunistas sociais, costureiras, faxineiras, jornalistas, babás, professoras. Tudo. O Fluminense é grande demais, tão grande que o velho escudo está até no peito de um traficante da Coreia num documentário deep web. Quem dera ele pudesse ser ressocializado, mas agora é tarde, tarde demais, exceto para se viver um domingo de alegria com o Fluminense em campo atrás da pelota, desde o tempo de Barthô até os atuais, de Scarpa e a garotada.

E nada disso pode ser controlado, manipulado, impedido, destruído ou tomado de assalto por qualquer fascista, porque nada lhe pertence que não seja a sua própria obscuridade – a mesma que determina a distância entre a literatura de primeira e a falácia de terceira.

Viva a bossa. Viva a palhoça.

Quem manda agora no chicote é a senzala.

O Fluminense ruge alto demais.

Seremos campeões.

Panorama Tricolor

@PanoramaTri @pauloandel

Imagem: rap

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6 Comments

  1. Excelente. Fui lendo e viajando na emoção de torcer pro Flusao, é muita coisa bonita que o texto faz a memória recuperar, pessoas que pensam, cantam e falam do Flu, do país, lugares da nossa história. 1° Campeão da Primeira Liga.

  2. Grandioso, como sempre, até para dar um recado que podia ser dado em três palavras. Parabéns!

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