BICAMPEÃO Pink Floyd tricolor no Maracanã (por Paulo-Roberto Andel)

I

Dia 15 de julho de 1989. Um dos dias em que a Terra literalmente tremeu por causa do rock n’ roll. Num concerto gratuito em Veneza, mais de 200 mil pessoas se aglomeraram na histórica cidade italiana para acompanhar o show do Pink Floyd, realizado em uma embarcação a mais de 100 metros da costa, tudo para garantir a preservação dos monumentos e equipamentos locais, ameaçados pela potência do som da banda.

O show foi espetacular. A turnê gerou o álbum ao vivo “Delicate sound of thunder”, sucesso mundial. Depois da perda de Roger Waters, o Pink Floyd mostrou que não estava para brincadeiras e garantiu vários anos a mais na vida do conjunto. A apresentação foi transmitida pela RAI, a estatal italiana de TV, para dezenas de países, com a estimativa de 100 milhões de espectadores. Mas Veneza não passou em branco: a cidade literalmente virou de cabeça para baixo. Com 200 mil pessoas em êxtase musical, mais do que o triplo da população local, a quantidade de lixo produzido era tamanha que exigiu o apoio do Exército italiano para a remoção. Sem banheiros públicos, os fãs apelaram para o alívio em público, fazendo de Veneza um verdadeiro urinol. O caos nas ruas provocou a queda de todo o governo municipal. A maravilhosa cidade italiana nunca mais recebeu eventos do tamanho de um show do Pink Floyd.

Com a devida licença poética, a decisão do Campeonato Carioca de 2023 está para o futebol assim como a apresentação do Pink Floyd em Veneza está para o rock n’ roll: demolidora, devastadora e inesquecível.

Dentro de campo, o Fluminense não deixou pedra sobre pedra.

II

Confiantes, os tricolores desafiaram a tempestade e encheram o Maracanã. Apesar da desvantagem do Fluminense, havia no ar uma sensação de absoluta serenidade. Confiança também, mas acima de tudo serenidade. Uma torcida sereníssima, que viria a fazer história na decisão pelo tanto que gritaria, a tal ponto que chegou a cansar literalmente. Não há uma vírgula a dizer da torcida tricolor, e que sirva de lição para os anônimos em busca de fama à custa de maledicências nas redes sociais.

III

Junto com a serenidade, veio a estranheza. Aos cinco minutos do primeiro tempo, o Flamengo já fazia cera para cobrar um tiro de meta. Não era a cena de um grande Fla x Flu. Pelos vinte minutos seguintes, o jogo seguiu sem grande impacto: o Fluminense ainda parecia um tanto tímido e o Flamengo não fazia questão de jogar, mas de deixar que o tempo escorresse.

IV

O golaço redime, o golaço liberta.

Segundos antes do golaço que, sim, decidiu o jogo, o Maracanã inteiro prendeu sua respiração. Os tricolores, inebriados pelo giro de Marcelo à frente da área, enquanto os rubro-negros sentiram o cheiro de morte. Quando o jogador ajeitou a bola para a esquerda, colocou o Flamengo em xeque mate. A finalização em curva, implacável, foi a confirmação da rainha morta no tabuleiro.

Os tricolores urraram por cem anos. Sabiam que um gol daqueles não dá chance de reação. E ali o Fluminense se tornou campeão, porque depois do golaço o Flamengo, socado no queixo, não ficou mais em pé no gramado. Ficou evidente que o Fluminense não pararia por ali. A timidez deu lugar a uma atuação avassaladora, diante do rival que mal conseguia se defender das pancadas nas cordas.

Logo em seguida, Cano marcou o segundo gol. Antes do fim do primeiro tempo, o Fluminense pôs por terra a grande vantagem flamenguista. Foi tão fácil que só os desatentos não perceberam a melhor atuação do time em muitos anos. Tudo estava igual no saldo de gols, mas somente nisso: o Fluminense era serenidade e confiança, enquanto o silêncio da torcida rubro-negra era um estimador do resto da partida.

V

O Pink Floyd continuou a fazer Veneza tremer, enquanto as pessoas cantavam em êxtase.

O jogo voltou, o Fluminense continuou absoluto e, depois da dúvida, foi confirmado o pênalti que apenas confirmaria a vitória já decretada pelo golaço de Marcelo.

Cano não cobrou bem, mas fez o suficiente para marcar o gol no rebote, confirmar de vez o título do Fluminense e, além disso, comprovar sua condição de fenômeno como artilheiro e homem de decisões. Escreveu definitivamente seu nome na história do futebol brasileiro.

VI

Em quase 111 anos, o Fluminense bateu e apanhou do Flamengo dezenas de vezes. A grande diferença é que as batidas tricolores são marcantes nos momentos decisivos. Por isso, um Fla x Flu nunca é somente o Fla x Flu do momento, mas também uma antologia de seus grandes momentos, e em muitos deles o Fluminense levou a melhor, desde antes do profissionalismo, passando pelos anos 1930, o histórico 1941 e nas apoteoses de 1983, 1984, 1995 e 2022. Em todas, o Fluminense foi supremo, mas o que diferencia essa final de todas as outras é que o Tricolor nunca foi tão absoluto quanto neste domingo, enquanto o Rubro-negro nunca foi tão fraco.

VII

O maravilhoso quarto gol, feito pelo jovem Alexsander, serviu de madeleine à grande decisão. O título já era moralmente tricolor, mas a goleada retumbante pôs o vice-campeão em seu devido lugar no palco da final.

Ainda havia muito jogo pela frente, mas apenas do ponto de vista do cronômetro. As favas já estavam contadas. O Fluminense passou a tocar a bola sem muita preocupação com a busca por um placar histórico, enquanto o Flamengo era tão frágil que não conseguia sequer fazer o chuveirinho na área.

VIII

No apagar das luzes, o Flamengo fez seu gol de honra, mas não havia nada a fazer além de esperar que a massa tricolor, cansada de tanto gritar e apoiar, explodisse em seu sprint de êxito. Não havia tempo nem forças para a busca de um gol milagroso para levar a decisão para os pênaltis – felizmente, porque seria uma das maiores injustiças da história do futebol.

E se alguém tem dúvidas sobre a importância do bicampeonato tricolor, é só verificar o motivo do Flamengo ter escalado um time misto no meio de semana, pela estreia na Libertadores.

IX

Um time perde e ganha com todos os seus jogadores. O Fluminense foi campeão com uma partida admirável. Cada um a seu modo merece os parabéns.

O goleiro Fábio, merecidamente criticado em 2022, fez sua melhor partida pelo Fluminense nesta decisão. Nos poucos momentos em que foi exigido com gravidade, mostrou serviço.

Mesmo distante da forma ideal, o que ficou evidente quando foi substituído, Marcelo decidiu o título para o Fluminense. Seu golaço espatifou o queixo do rival. Fez grandes jogadas, bicou a bola quando foi necessário e enquadrou Gabigol.

Outro que mereceu muitas críticas severas e questionamentos, mas se superou pontualmente na final – mesmo sem perfeição – foi Felipe Melo.

Falar de jogadores como Arias, Ganso, Cano, André, Nino e Alexsander é chover no molhado. Fizeram o que se espera deles com base nos históricos pessoais.

Um nome muito importante precisa ser respeitado de vez pelos tricolores: Martinelli.

Não é possível falar do grande título do Fluminense sem falar do trabalho de Fernando Diniz. Assim como Telê, Nelsinho, Carbone e Renato Gaúcho, o treinador conquista seu primeiro título à beira do campo pelo Fluminense. Que sua trajetória seja gloriosa. O time hoje tem o seu perfil, é fato incontestável.

O Fluminense está de parabéns pela grande conquista, esperada há quase 40 anos, diante de um rival que não perdia uma decisão de título por três gols de diferença há quase 60 anos. Isso dá o tamanho da façanha tricolor, que ainda bate forte nos corações de homens, mulheres e crianças do Fluminense. Tivemos erros, precisamos progredir, há muito a ser feito, mas o bicampeonato carioca é incontestável.

Agora, o futuro exige mais serenidade, a prioridade do talento sobre as causas empresariais, o aproveitamento real dos jovens talentos da base, mais os ajustes para que o Fluminense finalmente brigue pelos grandes títulos que a torcida tanto deseja.

Que ninguém sente nos louros do Carioca.

X

Os garotos que riram e choraram com os grandes gols tricolores deste domingo são os mesmos que choraram por Assis, Renato, Fred, Flávio Minuano e tantos outros grandes protagonistas do Fluminense.

Jovens e velhos, ricos e pobres, vivos e mortos, estavam todos lá. Ainda estão.

Assim como se fala no jogo do gol do Assis, ou do gol de barriga, estes 4 a 1 passam à história do clube. Vão soar alto para sempre, assim como o Pink Floyd em Veneza desde 1989.

Domingo de Páscoa inesquecível.

O dia em que o Fluminense pegou uma colher e amassou o tricampeão da Libertadores como se fosse paçoca no prato.

XI

Para Álvaro Doria e Raul Sussekind.

Em memória de Mario Santos e Thiago Motta.

4 Comments

  1. Comecei a ler, e já sentí no texto aquele espíriro de Nelsom Rodriues, da mesma forma que sentia antigamente, quando tinha que esperar o dia seguinte para ler a crônica relatando mais uma de nossas conquista épicas. Nossa humildade só nos faz reconhecer que esse resultado do FlaxFlu já estava escrito “a mil anos,antes do nada…”.Saudaçoes Tricolores!

  2. Maravilhosa crônica, Caro Andel
    Que venham mais conquistas e sua força literária
    Aquele abraço

  3. Maravilhosa crônica, Caro Andel
    Que venham mais conquistas e sua força literária
    Aquele abraço

  4. Sensacional essa narrativa mais uma vez tão bem descrita pelo amigo Paulo Andel. ❤️

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