O mundo tricolor em 360 graus (por Paulo-Roberto Andel)

NOTA: esta coluna sofrerá atualizações e inclusões no decorrer dos dias 21 e 22/12.

30 HORAS

Por volta das nove e meia da noite desta quarta feira, fui encontrar meu amigo e ídolo Sérgio Vid. Ele vinha de Teresópolis, onde reside, e me buscou num super carrão Uber plus executive master, dirigido pelo Paulo, gente boa demais (apesar de torcer para o rival de mau agouro). Então partimos felizes para o Galeto Bandeira e traçamos um prato da casa com omelete alucinante.

Além do encontro fraternal, eu precisava encontrar Vid também para lhe entregar 16 exemplares do meu novo livro, sobre a conquista da Libertadores, ao lado de vários colegas desta casa. Não tenho porque exibir falsa modéstia: o livro ficou lindo e bem escrito. É motivo de alegria para mim num ano tão difícil. Gostei muito do resultado. “Pasión Libertadores” e “Fluminense Cotidiano” estão entre os melhores que já escrevi.

Então sentamos à mesa e começamos nossa conversa mais do que divertida e lá ficamos por umas duas horas. O Fluminense é praticamente nosso tema único, suficiente para lembrar de muita, muita coisa.

Em certo momento, rimos alto ao lembrar que há menos de dois anos, xingávamos Wellington e Cris Silva, tínhamos raiva das falas de Hudson e quase arrancávamos os cabelos com as práticas extraterrestres dos treinadores Odair Hellmann e Roger Machado. O futebol é assim: quando tudo parece fudido, acontece uma guinada que muda tudo. Lembrei ao Vid que há 40 anos, em 1983, vínhamos de um Brasileiro muito ruim e, num estalar de dedos, passamos a ter um esquadrão até hoje louvado pela nossa torcida. Do inferno ao céu. De certa forma, num formato diferente, também vivemos isso neste 2023, durante a decisão do Carioca: perdemos o primeiro jogo e precisávamos de três gols para reverter o quadro. Os 4 a 1 da partida final mudaram o caminho do Fluminense para sempre nesta temporada. Especialmente o golaço de Marcelo, que serviu de nocaute para o rival. Aquele gol mudou a vida de todos nós: decidiu aquele jogo, nos colocou em nosso devido lugar, abriu caminho para uma goleada inesquecível e para um bicampeonato esperado há quase 40 anos.

Em poucos meses, ali estávamos nós dois no Galeto Bandeira, com os livros da conquista da Libertadores e pensamos: estamos a um dia e meio do Fluminense decidir o título mundial de clubes! Algo maravilhoso, absolutamente surpreendente e até assustador. Algo que poderia até ter acontecido antes, mas que só se consolidou neste 2023, exatos 40 anos depois do início da Era Assis que tanto nos marca.

Quando nos despedimos do bar, eu e Vid falamos do sonho do Fluminense ser bicampeão mundial, algo que não imaginávamos mas que agora aí está como uma realidade. Podem falar o que quiserem, que o Manchester City é uma potência avassaladora, mas o falo é que hoje, somente hoje, um único time do mundo pode derrubar o grande esquadrão inglês: o Fluminense. Tudo leva a crer que fazer isso será uma tarefa hercúlea mas, se nos perguntarmos, quando não foi? Nunca tivemos nada de mão beijada.

Já no táxi, subindo o Viaduto dos Marinheiros, caminho que faço desde criança voltando do Maracanã, por alguns segundos parei e pensei: aquela corrida era diferente de todas as outras. Ali passei em inúmeras vitórias e também derrotas, claro, mas nunca tinha passado com a real expectativa de ver um título mundial – e ela está aí, agora, pois são nove da manhã e faltam 30 horas para o jogo mais importante do Fluminense nos 23 anos deste século XXI.

PAISAGEM DA JANELA

Tomo um táxi para um percurso breve, de um quilômetro para o trabalho. Carro geladinho, motorista gente boa, dá tempo de ver as ruas do Centro quase vazias, em ritmo de despedida de 2023.

Perto da Nova Petrobrás, um jovem carrega um pacote enquanto guia sua bicicleta laranja do banco. Está com a camisa do Fluminense.

Perto da Rua do Lavradio, uma garota carrega sua mochila nas costas e tem uma bandeira do Fluminense nos ombros.

Não posso ver agora, mas tenho certeza de uma multidão está espalhada pelas ruas do Brasil com algum elemento de representação do Flu. Uma camisa, um short, um escudo, a bandeira, a flâmula. Por um momento, ficam de lado as exorbitantes discrepâncias sócio econômicas; o abominável racismo que ameaça o Brasil é banido; de alguma forma, todos elevamos nossos pensamentos porque somos todos um escudo que anda, que caminha para tentar seu objetivo mais louvável em muitos e muitos anos.

Do alto da Praça Tiradentes, parece um quase feriado. Paro e me pergunto: o que estamos vivendo agora é verdade? É sério que daqui a pouco mais de 24 horas o Fluminense vai jogar para ser novamente campeão mundial?

Minha cabeça cheia de lembranças dá voltas em décadas num segundo. Eu me lembro de encontrar Raul num Fluminense x Guarani de Maracanã vazio, vazio. Um nem sabia que o outro iria. Vimos o jogo juntos. Isso tem 27 anos. E me lembro de estar no apartamento do Luizinho no comecinho de 1987, quando perdemos para o São Paulo no Morumbi, que acabaria campeão brasileiro. São 36 anos. O gol do Assis acabou de fazer 40 anos e está aí vivíssimo, presente. Nesse vaivém de pequenas histórias, caio de novo no golaço de Marcelo na decisão do Carioca. Aquele gol mudou o ano e o nosso destino para sempre.

Eric me manda uma mensagem de Caicó. Verá o jogo em Currais Novos com sua família. Está nervoso, o que é natural. Está muito nervoso, o que é ainda mais natural. Eu sou o contrário, o inusitado, e passo o começo da tarde com uma tranquilidade que impressiona a mesmo. Não é soberba e muito menos descaso, mas uma sensação de calma e, sinceramente, confiança. O Fluminense pode derrotar o Manchester City sim, por mais difícil que seja.

GIANT

Sentado no trabalho, perto de uma da tarde, esperando algum cliente vir investir em livros e música. Enquanto isso o CD player toca “Sophisticated Giant”, álbum gravado em 1977 pelo saxofonista Dexter Gordon, cercado de outros grandes músicos do jazz. Dexter tem uma carreira distinta de seus pares: ao contrário da maioria deles, sentou praça em solo europeu e lá solidificando sua obra, para só depois retornar aos Estados Unidos.

Comprei o disco ontem. Não o ouvia há anos.

Alguma coisa me diz que a doçura das melodias de Dexter tem a ver com o Fluminense. De onde eu fui tirar uma coisa dessas? Pois bem, como diz meu amigo Carlos Lopes, multi artista e intelectual de ponta, tudo tem conexões.

Em certo momento resolvo espiar as faixas do disco e seus títulos. Lembrava de algumas melodias, mas não dos nomes.

A conexão: faixa 6, com exatos 4:53 minutos, “How insensitive”, gravada por meio mundo, inclusive astros como Sting, que a gente conhece desde sempre como “Insensatez”, leia-se a genialidade da parceria entre o botafoguense Vinicius de Moraes e o Maestro Soberano Antônio Carlos Jobim, torcedor do nosso Fluminense.

Dexter Gordon nasceu em 1923. Estamos no ano de seu centenário. Gravou “Sophisticated Giant” em 21 e 22 de junho de 1977 em Nova York. Dezoito anos e três dias depois, o Fluminense conquistaria aquela que, para muitos, é a maior vitória de seus 121 anos, derrotando o Flamengo por 3 a 2 em 1995, no jogo do famoso gol de barriga de Renato Gaúcho.

JORGE

Nos conhecemos há quase 40 anos. Fomos de uma turma da pesada. E vimos muito o Fluminense no Maracanã e nas Laranjeiras. Muitas e muitas vezes, especialmente entre o fim dos anos 1980 e o fim dos 1990.

Vindo do Mato Grosso, Jorge veio passar alguns dias no Rio, basicamente o Natal com seu pai. E claro, ver o jogo dos jogos em sua cidade natal.

Atualmente nos vemos toda semana nas lives, mas falta o chope dourado da felicidade. Ele amanhã passará pela Adega Pérola, um ícone de Copacabana.

E nós, que vimos tanta coisa juntos, agora estamos na briga pelo bicampeonato mundial que esperamos por tanto tempo. Está chegando o dia junto com o verão no Brasil.

A MISSÃO

Este é um país que começa a sair dos escombros, mas ainda falta muita coisa. Existe fome, miséria, violência. Numa cidade como o Rio de Janeiro você sente um certo vazio nas ruas de alguns bairros. A maioria das pessoas está humilhada, descartada, despejada, cabisbaixa.

Para centenas de milhares de cariocas, assim como habitantes de outras cidades e estados, o Fluminense não é apenas o grande amor, mas também a única chance real de alegria neste Natal.

Apesar das dificuldades que não são poucas, os tricolores mais humildes estão por todos os lados: nos trens lotados, nas filas das barcas, nas ruas com suas caixinhas de doces ou entregando comida de bicicleta. O triste caos do Rio coloca milhares de pessoas em situação de rua, e não é incomum que se veja uma camisa tricolor à calçada, mesmo encardida mas tão significativa.

O Fluminense joga por muita gente por todo o Brasil. O sentimento dos tricolores ocupa coberturas da Vieira Souto e casas multimilionárias na Barra da Tijuca, ao mesmo tempo em que sacoleja nos vagões para Gramacho e Inhoaíba.

NOITE

Nove e meia da noite. Do outro lado do mundo, o Fluminense descansa para fazer seu jogo mais importante do século XXI.

Continuo num mar de tranquilidade, ao contrário de todo mundo. Não sei se é a maturidade ou se é por causa de ter visto muita coisa, mas sei que tenho total confiança no Fluminense.

Passou tudo rápido demais. Eu lembro de Rivellino, eu lembro do pó de arroz de 1980. Tudo isso está muito vivo.

MADRUGADA

Sempre achei que essa madrugada viria um dia, mas não imaginei que fosse agora. Acho que ela começou nos 4 a 1 da final carioca com Marcelo. Aconteça o que acontecer, aquele golaço mudou o Fluminense para sempre.

É uma grande madrugada. Pink Floyd em Veneza. Run like hell!

Então 50 anos de lembranças, histórias e pessoas se juntam às duas da manhã. Quanta gente, quantos momentos. Minha mãe com sua carinha de criança namorando o gramado em frente à TV. Meu pai, sempre sério. Meu irmão com seu olhar atento. João Carlos, quanta saudade.

Daqui a algumas horas o Fluminense pode ser bicampeão mundial, e esta é a sensação mais prazerosa destes 50 anos.

Valeu a pena viver até aqui para chegar a este dia, mesmo que tudo seja tão difícil.

Nem está tão quente, mas tomo um banho gelado e refrescante. Eu estou bem quente. Aproveito, pego um copo de mate com limão, tono meus remédios e volto para a cama.

Duas e meia da manhã, Eduardo Coelho manda uma mensagem e lembra da morte de Nelson Rodrigues, há 43 anos, em 21 de dezembro de 1980, à porta do verão. A madrugada é cada vez mais tricolor.

Três e meia da manhã. Começou o verão. Ontem foi aniversário da morte de Nelson Rodrigues. Hoje é um dos dias mais importantes da minha vida e de milhões de pessoas. É impossível cravar o que virá, mas dá para desconfiar – e parece ser bom! Muito bom.

NINGUÉM VENCE DE VÉSPERA

Entendo perfeitamente quem ache que o peso se foi com a Libertadores.

É natural.

Agora, é bom que se diga: depois de tudo que aconteceu esse ano, do jeito que foi, mesmo com muitos acertos e vários erros, não há como duvidar que o Fluminense possa ser campeão.

Futebol é muito mais do que dinheiro e talento, embora estes sejam muito importantes.

E quem conhece futebol sabe que uma simples vírgula pode levar à vitória monumental e ao fracasso retumbante.

Futebol tem história, tem peso, tem passado. Podem ter certeza: Guardiola sabe disso.

Podem ter certeza.

Não se trata de desprezar o poderio do City, um time que por sinal tem muito menos história do que o Fluminense – e não é nenhum desrespeito, mas um fato -, emergente neste século.

Apesar de todas as possíveis dificuldades, incluindo algumas que incomodam o senso comum, tal como a mobilidade dos veteranos tricolores, vamos lá.

Depois de um ano horrível, Fábio está numa temporada espetacular.

Nino, André e Martinelli estão com moral absoluta.

Criando, Marcelo é um monstro.

Ganso tem a frieza total, muito importante num momento desses.

Arias, monstro. Cano, monstro.

Keno não foi bem contra o Ahly, mas destruiu na final da Libertadores.

Mesmo com problemas evidentes, Felipe Melo coloca muita garra e incomoda adversários. Foi importante nos últimos meses, mesmo com os problemas apontados em nossas mesas.

O Fluminense foi tratado como um time de aposentados. Alguém acha que as vítimas da manchetagem não vão dar a vida hoje?

Nem é preciso falar dos garotos, que correm por cinco ou seis.

Ainda temos uma bomba atômica no banco, chamada John Kennedy. Os fatos e números aí estão.

O Fluminense é o time do último minuto, acostumado a vitórias inesquecíveis quando o mundo inteiro debocha. Tem dezenas de títulos e em nenhum deles era tudo como favorito – nem a Máquina, por incrível que pareça.

Futebol é risco. É fio da navalha. O céu e o inferno andam de mãos dadas e se empurram.

Ok, o City é o melhor time do mundo? Sim. Mas acontece que nesta sexta-feira, só existe um time no mundo que pode derrotá-lo: o Fluminense.

O Fluminense que vem lá de longe, do começo do outro século, edificando a trajetória do futebol brasileiro.

O Fluminense, que faz ateus verem milagres. O único time do mundo que já teve um super-herói como ídolo de carne e osso.

O Fluminense dos goleiros com defesas impossíveis, dos zagueiros que muitas vezes imperaram na Seleção Brasileira, dos meio-campistas que já escreveram arte e vitórias nos gramados, dos atacantes letais e de uma torcida que não precisa ser maioria para calar qualquer outra.

Fluminense, único campeão da Libertadores a vencer cinco campeões na competição.

Temos limitações, podemos até perder, até perder feio porque é futebol. Agora, se o Fluminense der um baile no City e for bicampeão mundial hoje, ele terá feito exatamente o que costuma fazer há mais de um século: desafiar definições, contrariar haters, virar a casa de ponta-cabeça.

Um bom presságio: o Fluminense jogará esta decisão com o início do verão no Brasil e no aniversário da passagem de seu maior torcedor e inigualável cronista, Nelson Rodrigues, com data de ontem.

O Flu tem a linda camisa verde e rosa que celebra Cartola, falecido no dia em que Edinho decidiu o título de 1980. Hoje, entramos em campo logo após o aniversário de morte de Nelson. Não se trata de morbidez, mas para lembrar que os nossos mortos estão vivos demais. E a eles se juntam Castilho, Pinheiro, Didi, Assis, Washington, Super Ézio… Nessa daí, o City não dá nem pro começo.

É muito difícil o jogo de logo mais, mas não dá pra não acreditar no Fluminense. São vitórias demais, títulos demais, superações demais, quebra de paradigmas demais, sempre contra rivais tidos como melhores. Quem tiver dúvidas, consulte os livros.

Os haters podem até zombar, mas estão suando frio. Eles sabem da história. Nós já estivemos à beira da morte algumas vezes, mas superamos tudo. Hoje, estamos vivos demais.

Vivos demais.

É um jogo. Um grande jogo. Tudo pode acontecer, do melhor ao pior. Só saberemos na hora. Mas se pensarmos que há dois anos tínhamos medo de não chegar às finais do Carioca e hoje jogamos pelo bicampeonato mundial…

Até a vitória, camaradas!

1 Comments

  1. Lembro do campeonato carioca de 1980, onde a base do Fluminense reforçada de Cláudio Adão e Gilberto ganham o carioca. Lembro de estar assistindo ao Fluminense 3 x 3 Vasco daquele ano, pensando que fosse ao vivo e fosse a decisão, que terminou sendo Flu 1 x 0 Vasco com um gol de falta do Edinho. Nelson Rodrigues não viveu para ver essa título.

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