O “gênio” e o idiota (por Paulo-Roberto Andel)

o genio e o idiota

Era uma vez um idiota. Nem de todo mau, nem de todo bom, mas idiota. Trazia em si certa terrível marca da personalidade: a soberba. Faz sentido: a soberba é a marca registrada dos idiotas, uma tatuagem, um selo de falta de qualidade. Autossuficiente sem razão aparente, o idiota passava seus dias e dias a vangloriar-se de seus feitos à Dom Quixote, em mil e uma noites sem sentido: ora acreditava – de verdade – ser o homem mais bonito e desejado da cidade – o Don Juan irresistível -, ora todas as mulheres do mundo deixariam seus romances para beijarem-no aos pés – e ele sequer desconfia em sua ingenuidade fútil que as melhores mulheres apenas veem-no como um arrogante sem assunto, vazio, fugaz, incapaz de despertar os amores fundamentais -, ora dirigia os melhores e mais poderosos veículos do mundo – carros possantes, aviões supersônicos, tanques de guerra, espaçonaves e tudo o que fosse capaz de deixar outros idiotas babando – claro, o idiota sempre tem a pretensão de ser o maior entre seus pares sempre, nem que seja num campeonato de cuspe ou pum. A soberba soava-lhe tão importante quanto os atos de inspirar e expirar, exceto na hora de encontrar um níquel no bolso – e aí, amigos, nesta hora não há soberba que não deixe suas varizes e rugas à tona. O apodrecimento da verdade.

Era uma vez um “gênio”. Não, não propriamente um gênio. Nunca aceitou o grande elogio para si, desconfiando sempre que se tratava de uma pecha. Achava-se simplório: tinha muitos amigos em volta, algumas mulheres bonitas ao lado – três ou quatro muito insinuantes -, alguma beleza, algum charme, nada em excesso além do peso do corpo, uma paixão distante, trabalhos e trabalhos a fazer todos os dias. Apesar de suas manifestações profissionais ficarem visíveis na condição de arte, sempre recusou o rótulo de artista. Poesia? Não era um poeta, não aceitava. Escritor? Quem sabe? Cronista? Fotógrafo? Ensaísta? Havia mil planos e o suposto gênio – que nunca aceitou ser gênio – levava seu caminho em frente, com sua humildade. Um teimoso pela humildade, mesmo que desconfiasse nem sempre precisar ser humilde, ainda mais frente a idiotas arrogantes – o que não falta pelos trilhos da vida, já que o idiota é como a mosca: nasce e morre em todos os lugares. Alguns, sob delírio, até viram intelectuais na canetada – ou mesmo publicam livros, artigos, declarações bombásticas e outras quinquilharias – viram jornalistas respeitáveis, articulistas famosos, editores de jornais – viram formadores de opinião mesmo que não saibam a diferença clara entre Kerouac e Hemingway. É muito fácil para qualquer idiota parecer um gênio, até que um dia a máscara cai. Muitos riem, outros desconversam: não há muita importância se a ribalta tem um idiota.

Um belo dia, o gênio e o idiota cruzaram seus caminhos. Era uma arquibancada de futebol. Era o Fluminense. Nenhuma torcida pode ser mais democrática em juntar duas personalidades tão opostas. Mas acontece que o gênio, mesmo enrustido, tem a vocação de aprender seja com quem for, podendo inclusive dar atenção, carinho e respeito a um idiota, seja este em potencial ou já consagrado pela idiotice. Por outro lado, o idiota sempre está mergulhado na arte da exibição: precisa mostrar qualquer coisa que lhe ponha na zona de conforto de uma superioridade imaginária – mesmo! E então conversaram, falaram de coisas, trocaram pensamentos, mesmo o idiota se achando superior e vendo no não-gênio apenas um idiota, enquanto o não-gênio via no idiota um ser humano primitivo que poderia ser lapidado com o tempo, caso fizessem uma jornada juntos. Com o passar do tempo, ficaram perto um, dois, vinte, cinquenta jogos, o idiota sempre a se exibir, o não-gênio sempre a refletir e tentar aprender.

Mas o mundo não é feito para que idiotas e gênios fiquem juntos lado a lado em harmonia. Por mais que haja compaixão, isso tende a uma impossibilidade. Jogo após jogo, quanto mais o idiota vociferava e berrava contra tudo e todos, tudo porque o Fluminense não brilhava numa determinada época – não era perfeito – A PERFEIÇÃO NÃO EXISTE -, o não-gênio passou a sentir desconfortável não apenas porque o idiota era um idiota, mas sim por conta de sua agressividade pavônica, ostentatória, emplumada. O Fluminense era uma completa porcaria segundo a objetividade do idiota, o Fluminense poderia melhorar segundo o não-gênio. “Eu sei de tudo, eu sou o melhor em tudo, isso tudo é uma merda – e quem não vê isso é idiota”, o brilho opaco do idiota estampado em cores vivas. “Em futebol tudo muda num instante, é preciso dar tempo ao tempo”, dizia o não-gênio. Na verdade o idiota tinha profunda inveja do não-gênio, de seus amigos, das garotas que lhe cortejavam – e que ele, Dom Juan em moinhos de vento, não tinha mas fingia ter. Inveja de sua simplicidade, de seu desapego, de seu talento óbvio, mas discreto – e tudo isso desaguava na camisa do Fluminense, em suas nuances, suas partidas, erros e acertos pertinentes à realidade humana.

E o gênio que nunca foi gênio? Ou melhor, o não-gênio?

Sonhava em fazer do idiota uma pessoa mais libertária, reflexiva, pensadora, capaz de entender e aceitar o outro, os caminhos, as pluralidades. Discutir a realidade, a fantasia e a vida, sem a necessidade de autoafirmação oca que, por vezes, inunda os homens. Fazer entender que não somos nada nessa terra cheia de árvores e gente dizendo adeus – Oswald de Andrade -, nosso tempo é finito, não temos nenhuma grande importância que não para nossos amigos e amores – a empáfia é o câncer da alma. Para um gênio – ou não-gênio -, o sucesso é a simplicidade da vida, é o argumento que faz pensar, mergulhar na surpresa, a reflexão. Para o idiota, isso é uma idiotice, claro: o que importa ser reflexivo se você não tem cinquenta curtições no Facebook para referendar seu rosário de bobagens? O que lhe vale é a curtição, o carrão, a ostentação e um mundo cercado de “ãos” que, na verdade, soam como “inhos”.

Tentou num jogo, dois, cinquenta vezes nas arquibancadas. Não deu certo: para o idiota, o Fluminense era algo pequeno diante de si próprio e o não-gênio era só mais um idiota incapaz de ver com facilidade a genialidade em sua soberba oca desfraldada em tons carnavalescos – lembremos: todo idiota se acha um gênio e quem não reconhece isso vira a ralé. E então o idiota escreveu os passos de seu ballet da morte naquilo que poderia ter sido uma grande amizade: saiu da toca certa vez, disparou em frenesi e, por motivo fútil durante uma conversa, desancou o não-gênio – o que mais se poderia esperar de um idiota? Um tricolor agredindo um tricolor gratuitamente. Nada pode ser mais estúpido. Afastaram-se, dando um sentido lógico à coisa. o Fluminense foi tido como a bandeira da discórdia final, mas não era apenas isso.

the division bell floyd

Sempre ávido por uma vitória que nunca lhe sorriu na vida, exceto pelos moinhos de vento, pôs-se o idiota a malversar a figura do não-gênio pelos quatro cantos, dia após dia, o que é bem plausível, pois essa é a missão do idiota: estampar a obviedade em sua idiotice. Vingar-se por se incomodar em ter alguém de mais qualidade a seu lado. Não importa o progresso pessoal – porque este é impossível! -, o que vale é eliminar o próximo, mais ou menos como no bom e velho jogo de War, onde determinados competidores, em vez de buscarem seu objetivo sorteado, aprumam-se em dar voltas no mundo para eliminar um exército adversário por nada. Quando um gênio e um idiota estão lado a lado num debate, ambos se doem: a diferença é que o gênio suporta o idiota e tenta puxá-lo para cima, mas o idiota jamais engole o gênio – é o alvo a ser destruído. Negar o outro é a única maneira de um pleno idiota ter algum conforto mental.

A cada canto, a cada conversa, a cada amigo comum ou não, lá foi o idiota a desfraldar sua bandeira de verdades mofadas contra a figura do pobre não-gênio: ”Idiota, idiota, mil vezes idiota, tão idiota quanto esses idiotas que deixam de ver os jogos em suas confortáveis televisões de muitas polegadas para ir a jogos idiotas, feito aqueles idiotas de Volta Redonda e Macaé – idiotas feito este idiota metido a gênio”. E então o gênio que nunca se sentiu – ou foi – gênio calou-se: era perda de tempo a dialética com um verdadeiro idiota. E separaram-se para sempre, com todo o ridículo significado em um homem de torcida querer ser melhor do que outro homem de torcida – ambos na mesma torcida, mas tão distantes no pensamento, na compreensão e no sentimento. Um borra-botas, um sem-vintém deslumbrado e esplendidamente infeliz. Se soubesse o que é caráter, não seria um idiota. Mas é realmente um idiota, de modo que subjetividades estão descartadas.

Hoje é sábado. O Fluminense está de volta a Macaé. Joga com o Inter no começo da noite. Precisa recobrar forças, refazer caminhos, buscar um difícil pentacampeonato que está milhas e milhas distante do impossível. O caminho das dificuldades que sempre foi temperado pelas três cores. Temos um caminhão de problemas, o time ainda não deu liga em 2013 e precisa melhorar muito para ser um verdadeiro brigador. Mas isso não pode acontecer? Claro que sim. Falta muito, mas pode não faltar. O futebol às vezes muda num segundo. Perseverar é preciso, mudar também. Rolling stones gather no moss, já dizia o grande Muddy Waters.

O não-gênio vai tomar a velha estrada e seguir seu rumo ao lado dos amigos – menos um querido que terá missão de arte, será um homem de samba -, é a sina que lhe domina, o amor ao tricolor, a fraternidade sem arroubos estrambóticos e prepotência. E terá seus camaradas ao lado, a namorada, a mulher amada, os melhores pensamentos, um sábado de calor humano independentemente do resultado. Mas quer a vitória. Sempre quer. Porém, futebol não é matemática; há outras variáveis, muitas.

O idiota, mergulhado na soberba, será o dono da verdade absoluta feito aqueles que espumam a própria baba de boi diante duma televisão de muitas polegadas, crente que dizer isso em público é sinal de status – ou uma bênçao de Deus -, capaz de lhe trazer todas as mulheres do mundo como, se em 2013, elas – as mulheres de verdade – dependessem ou precisassem de algum homem para isso. E vai se achar superior, altivo, imponente, pavão sem mistérios de asas abertas e ardor caleidoscópico. O idiota é o melhor homem do mundo, sem dúvida, exceto pelo fato que seu mundo tem o tamanho de um amendoim passado e esmaecido. É bom esclarecer: há dezenas de milhares de torcedores que não são nem um pouco idiotas – pelo contrário! – e também se refestelam diante da tela – a diferença deles é que não acham idiotas os que querem viver seu amor em campo, in loco. O idiota sabe todas as respostas, todos os caminhos e julga-se capaz de levar o Fluminense sozinho – não precisa de companheiros – a todos os títulos: basta que lhe deem uma camisa 20 e ele será um Deco no auge, um Pelé: driblará onze adversários, entrará com bola e tudo cinco vezes e a partida terminará apenas quando o efeito alucinógeno passar.

E aqui está desvendada finalmente a única coisa que faz de alguém uma pessoa genial de verdade: a capacidade de fazer, ter e manter amigos pelo infinito afora. Ou buscá-los em tempos perdidos. Ou trazer ao seu lado como irmãos aqueles que, um dia, pareciam ser o outro lado de uma trincheira. Ou o grande amor pertinho, mesmo tão longe. A grande vida, o sentido da vida, tudo estampado com as melhores cores: grená, verde e branco. A capacidade de sofrer golpes duros, covardes e dar a volta por cima como se aqueles fossem míseros esbarrões desimportantes – na verdade são.

Só um verdadeiro idiota não compreende isso.

E nem há de compreender.

Um gênio cativa. Um idiota afasta.

Quando a viagem acabar na madrugada, o não-gênio, sempre não-gênio desde o primeiro parágrafo desta prosa, vai namorar loucamente como se estivesse numa fantástica fábrica de chocolate – aka Johnny Depp – ou sussurrar segredos de amor do mesmo jeito que um verdadeiro poeta beat escreveria  – ou também falaria – para sua amada bailarina se ambos estivessem a conversar perto da Times Square, do Bickford’s ou qualquer restaurante favorito e barato.

Já o idiota vai olhar para o teto à madrugada e quase não perceberá o quanto sua idiotice o leva aos porões da solidão. Cercado de “ãos” nas falácias, a vida real estampará um tetinho, um silenciozinho e uma mediocridadezinha que só reluz quando um idiota contempla-se no espelho e ri do próprio fascínio que exerce em si – e em mais ninguém.

Já o Fluminense, amigos, é muito mais do que tudo isso, haja o que houver logo mais. Queremos vencer, não sabemos se vai dar. Tentaremos. A vida é tentar. Sonho? Quem não sonha morreu mas vive.

Afinal, hoje é dia de rock. E o tricolor na estrada definitivamente não precisa de idiotas.

Na verdade, cada idiota tem o gênio que merece.

Paulo-Roberto Andel – O Brou

Panorama Tricolor

@PanoramaTri @pauloandel

Livre inspiração em

http://pt.scribd.com/doc/73763121/Alberto-Pimenta-Discurso-Sobre-o-Filho-Da-Puta-Fenda-1991

Imagens: PRA/ “The division bell”, Pink Floyd, 1994

http://www.editoramultifoco.com.br/literatura-loja-detalhe.php?idLivro=1184&idProduto=1216

Schopenhauer, por Abujamra

3 Comments

  1. Rods comenta:

    tudo o que posso imaginar é alguém perguntando: “anotaram a placa do caminhão?”

    Atropelou legal, meu amigo!

  2. Porrada… Porrada… Porrada! Sensacional! Queria pegar a estrada também, mas tenho que comemorar os 5 anos do Grupo de Sambas de Enredo que contrariando toda a lógica, deu certo! Tragam esta vitória!

    Quanto aos idiotas, a frase de um velho sábio professor meu ao expulsar um aluno de sala de aula:

    “Você nasceu de repente… Vai viver à luz da ignorância… E vai morrer de repente”!

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