O feitiço da ilha (por Paulo-Roberto Andel)

Jogar na Ilha do Retiro lotada sempre será uma imensa carne-de-pescoço, independentemente da colocação do Sport em qualquer campeonato. Ontem não foi diferente, com a saudável exceção de que, pela primeira vez em muitos anos, o Fluminense pisou o gramado pernambucano com a tranquilidade de quem foi campeão antecipado. Tetracampeão, alias. Portanto, digam o que disserem, é claro que isso mudou o perfil da partida – ora, somos os grandes vencedores; por mais que haja recordes no caminho, o relaxamento é natural e isso explica o empate de ontem em um a um. O Fluminense jogou calmo e feliz num dos palcos mais difíceis do futebol brasileiro, ainda mais pelas circunstâncias de proximidade do descenso em que o Sport se encontra. Jogamos sério, honramos a camisa, quem não pôde por algum motivo ficou de fora. Os jornais fizeram o tradicional carnaval por causa da cerveja de Deco: topam tudo por dinheiro, vendem a mãe em 48 prestações sem juros e sem entrada.

Para quem tinha a total responsabilidade em campo, que poderia significar vida ou morte no campeonato, o Sport até correu menos do que em outras oportunidades num começo de jogo – o que não quer dizer que não tenha agredido e buscado ataque, longe disso. Atacou, lutou, incomodou, mas esbarrou em nossa defesa extremamente sólida que só falhou individualmente num único momento – o que levamos o gol de empate, numa bobeada de Leandro Euzébio, provavelmente por estar de cabeça quente em termos literais (devido a um choque anterior). Nada de crucificar, foi apenas uma bobeada. Antes disso, tínhamos a vantagem com o gol de Fred, um daqueles que o craque não perdoa: bola na marca do pênalti limpa e livre, deliciosamente oferecida para ser empurrada às redes, pé direito, chute com força, um a zero sem pestanejar. Antes disso, o craque poderia ter marcado em pelo menos uma oportunidade real, em linda cabeçada que triscou o ângulo direito do goleiro Saulo. No começo do jogo, Wallace também deu um chute forte cruzado, perigoso. Deslizando no mar da tranquilidade, o Fluminense cumpriu o primeiro tempo com altivez; se não correu intensamente – compreensível, claro -, dedicou-se ao jogo e poderia ter saído vencedor na descida para o intervalo. Algumas peças não foram bem, como Neves e Sóbis. Wallace, já em ritmo de despedida, deu suas escorregadas. O resto, de bom para cima. Mas não custa louvar o mesmo Neves pela bola que tirou em cima do gol com Cavalieri já batido, ainda que ela não fosse entrar. Poucas faltas, jogo agradável e bem-disputado, o Sport mostrando que poderia estar em situação bem melhor no campeonato se não tivesse distração.

Voltamos ao jogo com Sóbis quase marcando de cabeça no canto direito. O Sport numa correria danada, sem tempo de respirar, jogava a vida em campo. Onze leões e uma torcida leonina. Onze catalânicos. O jogo ficou mais brigado, com mais faltas. Perdemos nossas chances. Fred marcou, o auxiliar mostrou acuidade visual de águia do Atlântico Sul ao invalidar o lance, difícil até de comprovar em computador – o tira-teima já foi garfado, lembremos disso. Noutro lance, o matador não estava impedido. Acontece. Felizmente já temos o tetracampeonato no peito, mas acho estranho que a turma do chororô não mencione estes lances.

Quando precisamos, Cavalieri foi gigante com as mãos e os pés. Impecável. Mais importante do que tudo: tem autocrítica. Ao contrário dos tricolebas, habituados ao discurso de “agora vocês elogiam, mas queriam que ele saísse do time ano passado…”, o próprio goleiro em entrevista recente (depois ratificada por sua bela esposa) admitiu ter estado muito mal no começo de 2011. Depois mostrou recuperação, hoje é o melhor do país, uma partida maravilhosa depois da outra. Ontem não foi diferente. Um gigante. E quando não pôde ele mesmo intervir, sobraram Digão, Elivélton (em lugar de Euzébio), Valencia. Mais duas bolas tiradas em cima da linha. Para alguns, azar. Acho que foi incompetência nas finalizações e qualidade dos nossos defensores. Um chute passou em diagonal rente à trave direita. Depois outro, depois outro. Repito: o Sport jogava sua vida, o tetracampeão Fluminense jogava sua dignidade e a chance de um recorde que ainda pode acontecer no próximo domingo. São valores diferentes.

A tela da televisão aos poucos mostrou pernambucanos chorosos, algumas mulheres muito bonitas aos prantos, a dor que só entende quem ama um time de futebol. Nós, tricolores, sabemos o peso dessa cruz e nos comovemos, ainda que tenha sido um peso muito maior: ninguém tem coragem de exercer hoje na imprensa do Brasil o escárnio daqueles anos contra nós. O destino tem sido cruel aos poucos: uma vez rebaixamos o Juventude de vez, depois o Coritiba, o Palmeiras há pouco e o silêncio rubro-negro ao fim do jogo de ontem nunca foi tão 1995. Contudo, o Sport é digno; precisa dizer cem mil vezes que ganhou um título merecido com toda a autoridade e alguns fingem que não veem, outros comemoram o que não venceram. Haja o que houver na próxima semana, o Leão da Ilha voltará porque este é seu destino, tão certo quanto a estrela dourada de campeão brasileiro que carrega no ventre.  Um dia, a imprensa assassinou o Fluminense, ele ressuscitou e está mais vivo do que nunca, para desespero das manchetes.

Mais tarde veio a garotada. Samuel e Junio. A chapa ferveu o Sport todo ataque, o Fluminense fazendo silêncio de féretro na Ilha a cada contragolpe. Teve ares de boxe, dois pugilistas a socos implacáveis e alguém esperando um nocaute que não aconteceu, mas não por falta de oportunidades. Eles correram como nunca, nós fomos combativos como sempre. Quem viu, gostou. Domingo que vem tem mais. O verão se aproxima com toda a força, o sol do Fluminense brilha vigorosamente em 2012, a águia suavemente flana por cima da dorsal atlântica. Foi um ano justo. Começamos desacreditados como sempre, terminamos vitoriosos como a sina sempre demonstrou.

Ainda há o clássico contra o Vasco, o recorde pelo caminho – se vier, melhor ainda – a chance de gritarmos felizes pelas arquibancadas e, quando janeiro chegar, junto virá a hora de recomeçar dentro desse amor profundo que chamamos de futebol. Sempre foi assim, sempre será. Vivos ou mortos, cada um de nós é uma bandeira no concreto do cimento ou no acrílico das cadeiras. Somos os tetracampeões e o ano já oferece saudades.

Paulo-Roberto Andel

Panorama Tricolor/ FluNews

@PanoramaTri @pauloandel

Imagem: Gazeta Press

Contato: Vitor Penta Franklin

1 Comments

Comments are closed.