O concerto da cantora muda (por Rogerio Skylab)

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Dizem que foi um processo de anquilose, provocado por um acidente, que a teria levado a não mais abrir a boca; outros, no entanto, confirmam a versão de uma perda gradativa da voz. O fato é que naquela cidade, tão cheia de acontecimentos estranhos, aquele era mais um: o concerto da cantora muda.

Chegamos cedo a fim de ficarmos bem localizados, mas, pra nossa surpresa, encontramos uma longa fila de espera. Luiza foi quem havia me chamado a atenção para o show. Eu não era um contumaz freqüentador desses eventos, muito embora aquele se distinguisse pela força do seu paradoxo. Não demorou até que adentrássemos o local. O teatro tinha uma longa tradição na cidade e fazia parte do roteiro das grandes companhias.

Luíza sugerira que ficássemos na segunda fileira, uma vez que não havia lugares marcados. Já instalados, pudemos acompanhar a lotação do teatro, que se deu em poucos minutos. Aquela noite era especial e todos aguardavam ansiosos o espetáculo.

Talvez por um costume que trouxesse arraigado de longa data, fui ao banheiro. Não queria perder um só lance do que estava por vir. Mas, de uma certa forma, o espetáculo já havia começado quando, no corredor de acesso ao toalete, esbarrei com uma pessoa que não via há muito tempo. Sua imagem abrupta, inesperada, depois de tão longa ausência. E não fosse um cansaço congênito, talvez lhe tivesse proferido algumas palavras. Mas resolvemos seguir direções opostas. E só foi o tempo de regressar ao meu lugar que se apagaram as luzes. E o espetáculo começou.

II

Algum tempo atrás, eu havia consultado o médico, intrigado que estava com meu estado, próximo ao da morbidez. Não sei o momento exato em que tudo aquilo havia começado. Quando dei por mim, me sentia incapaz de levantar da cama.

Acho que, por essa mesma época, Luíza reclamou de algo parecido. Lembro também de outras pessoas, de nosso círculo de amizade, terem descrito o mesmo sintoma. Alguns jornais no Brasil, nessa ocasião, chegaram a anunciar uma epidemia, que muito embora tivesse sido erradicada, provocou sequelas.

Nesse mesmo período, fui testemunha de algo estarrecedor: no dia 13 de outubro de 1968, próximo ao AI-5, tinha ido assistir a um Fla x Flu histórico no Maracanã, pelo torneio Roberto Gomes Pedrosa. Definitivamente, era o Fluminense dos meus sonhos: Felix, Altair, Galhardo, Assis, Samarone, Lula… e até o baixinho Wilton, protagonista do lance mais bizarro do mundo do futebol. Completamente na banheira, recebe um lançamento do diabo louro e, metendo a mão na bola pra todo mundo ver, dribla o goleiro Marco Aurélio e faz o único gol da partida. As pessoas pensam que o árbitro Armando Marques teve a sua mãe xingada pela torcida do Flamengo. Ledo engano. Ninguém levantou a voz. Ningém fez um só gesto. Foi o Fla x Flu mais silencioso do universo.

Vinha falando cada vez menos. Luíza também, quando muito em monossílabos. Nossos encontros, que antes eram marcados por discursos inflamados, transformavam-se em longas ausências. Fomos então tomados por um grande susto, quando tivemos conhecimento, pelo jornal, do concerto. E não estranho o tumulto e o frisson que tenha provocado. É que cada vez mais as pessoas se silenciavam. Pela primeira vez, surgia algo que vinha de encontro ao que todos sentiam: uma vontade profunda de ficar calado; um desânimo desalentador; um desdém pelos grandes discursos; uma ruptura com o passado e com a sua vocação pelo verbo. O concerto da cantora muda dizia tudo isso.

III

Quando se acenderam as luzes, aos primeiros acordes da orquestra, ela surgiu do fundo do palco e, aproximando-se ao microfone, não entoou nada porque era muda. Logo ela, que vinha de uma safra de grandes cantoras, cujo repertório estava calcado em compositores que também eram poetas derramados. Daí a ironia. De uma certa forma, ela desconstruía as canções, permanecendo muda. À sua doença, ela respondia com uma forma inovadora de cantar. Em nenhum momento maculou sua interpretação com palavras. Nem mesmo os grandes gestos, com os quais apareceu pela primeira vez ao grande público, foram lembrados. Ela permanecia, diante da orquestra, em silêncio, num estado mórbido e invariável. E foi-se desfilando todo o cancioneiro popular, até o momento em que, num determinado número, a orquestra parou. Apenas o primeiro acorde. Dali em diante a música deixava de ser ouvida, permanecendo em silêncio até o final. O cumprimento da cantora era o sinal indicativo que o show tinha terminado. Foi então efusivamente ovacionada.

A partir dali, uma nova forma de cantar substituía a antiga. Pouco tínhamos a comentar, eu e Luíza, ao final do concerto. Talvez fosse tanto que nem valesse a pena. Permanecemos mudos. Quando cheguei em casa, me vi movido por um desejo antigo de contar aquela estranha experiência. Ainda que nenhuma palavra fosse mais capaz de expressar coisa alguma.

FIM

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Imagem: rosky

 

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