Malandros e malandragens (por Walace Cestari)

malandros

Quando da vitória da Alemanha sobre o Brasil fiz uma provocação afirmando que o trabalho duro, o esforço e a dedicação venceram o jeitinho, a malandragem e o descompromisso de quem acha que somente o talento bastava. Meu amigo Paulo Andel retrucou-me com outra provocação, a de que apagássemos 1958, 1962, 1970, 1994 e 2002. E como “otras palabras” sempre nos levam a reflexão, aprofundei-me nos pensamentos sobre o desafio.

Sempre afirmei que o futebol é um traço cultural de uma sociedade e, assim sendo, representa muito de suas ideologias, clarificando-as. Isso traduz uma tradição da seleção brasileira em apostar nos talentos (muitos!), na criatividade, no improviso, enfim, em focar nas características individuais para chegar à vitória.

Ainda que, de fato, não seja sempre desta forma, a própria forma de contar a história busca o padrão do estereótipo. Em 1958, houve a copa do menino-gênio Pelé. Falamos de craques, sem imaginar que havia qualquer trabalho tático por parte do treinador. Não se faz menção que ele criou o 4-2-4 em substituição ao WM já cansado de copas anteriores. Vicente Feola, inclusive, entrou para a história (injustamente) como o sujeito bonachão que dormia no banco de reservas e que teve de aceitar o pedido dos jogadores para colocar Pelé e Garrincha em campo.

Em 1962, a crise era a ausência de Pelé. Dentro da lógica de depender exclusivamente do talento, seria uma ausência irreparável, que nenhuma tática daria conta. Aymoré Moreira nem sequer é lembrado por ter imaginado um 4-3-3 especialmente para a Copa e ter colocado Amarildo pela esquerda, puxando Vavá para o meio do ataque, no lugar onde atuaria Pelé. Ainda assim, conta-se com mais alegria sobre a malandragem de Nilton Santos ao dar um passo à frente para enganar o árbitro contra a Espanha ou sobre o sumiço do árbitro – glorifica-se a atitude atribuída aos cartolas nacionais – para não entregar a súmula com a expulsão de Garrincha e fazê-lo único jogador expulso em uma Copa a atuar na partida seguinte.

Em 1970, chegou-se – em dado momento – a diminuir o trabalho genial de João Saldanha frente a um elenco estelar. Da mesma forma, repete-se que Zagalo apenas deixou que os jogadores decidissem o que fariam em campo. E, mais uma vez, atribui-se à genialidade (inequívoca) a razão da vitória. Como se fosse apenas um amontoado de craques que provavam a superioridade natural do brasileiro com a bola nos pés.

Em 1994, a seleção brasileira mais tática que se sagrou campeã foi igualmente a mais criticada. Exatamente por isso, por ter no esquema de jogo definido sua principal marca. Temia-se igual desfecho da copa anterior, onde o treinador e seu esquema 3-5-2 “europeu” foi o responsável pela derrota. Mas, com o título, há o herói: Romário, aquele que, segundo o discurso corrente, “ganhou a Copa sozinho”. O Bad Boy (dos maiores talentos que vi pelos gramados) era reverenciado por seu estilo descompromissado, “treinar para quê, se eu já sei o que fazer?”

Veio 2002 e a “Família Scolari”. Não era um grupo dedicado ao trabalho, mas uma família. Sob a batuta de talentos como Rivaldo e Ronaldo, a seleção foi coroada pentacampeã. A bela imagem de Cafu “100% Jardim Irene” ganhou o mundo e mostrou o brasileiro como um exemplo de superação por seu talento, por sua emoção. Mas, alguém lembra qual o esquema tático daquela seleção? Não, o foco era o cabelo “cascão” de Ronaldinho.

Assim como se elevam heróis ao panteão da genialidade, de forma a individualizar cada conquista, faz-se o mesmo nas derrotas: buscam-se vilões a todo custo, culpados únicos individuais. “Nós” somos pentacampeões. “Eles” perderam a Copa e fizeram vergonha. Não há coletividade no imaginário da sociedade brasileira.

Barbosa foi condenado por sua falha, sem direito à defesa, durante toda sua vida. Feola, campeão de 58, foi responsável pelo fracasso de 66 por falta de comando.  Em 74, a soberba que atacou Zagallo, que afirmou não conhecer os holandeses rendeu-lhe a culpa. Em 78, o título de “campeões morais” responsabilizou os outros pela terceira posição do Brasil. Em 82, Cerezo e Júnior sairiam crucificado por suas falhas contra a Itália. 86, a derrota foi atribuída a Zico. Em 90, Lazaroni e a “europeização” do futebol brasileiro responderam pela derrota. 1998, a explicação vai desde a convulsão de Ronaldinho à teoria da venda da Copa. 2006, foram a farra, o descompromisso e o peso de Ronaldo e Adriano que fizeram o Brasil derrotado. Em 2010, Júlio Cesar e Felipe Melo vestiram a carapuça dos culpados.

O fato é que jamais houve qualquer discurso em reconhecer que o adversário era superior e que a mentalidade brasileira deveria mudar. Felizmente, uma goleada acachapante praticamente impede a eleição de culpados individuais. Resta agora espelhar-se na derrota que os algozes já tiveram e como a enfrentaram: organizaram-se, valorizaram o trabalho desde a base, dedicaram-se a fazer um grande campeonato nacional.

Nada disso impõe a morte do talento natural do brasileiro. Mas reafirma que não basta só o talento, que não é ele que deve ser mostrado como exemplo. Ainda mais em tempos que o endeusamento da mídia em relação a alguns atletas ultrapassa em muito qualquer qualidade técnica que temos. Quando a imprensa vende fácil os gênios, o esforço parece um castigo para os menos afortunados. E, assim, temos um real motivo para as lágrimas que se derramam pelo país.

Panorama Tricolor
@PanoramaTri
Imagem: google
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2 Comments

  1. (cont.) balões, chapéus, trivelas, roscas, lambretas, etc. Como pode um país ainda em desenvolvimento, o eterno “país do futuro”, não ter humildade para aprender e respeitar o próximo? Sim, porque isto vai além do adversário em um competição, seja qual for, mesmo não esportiva. A antiga civilização alemã, por mais que a história conte as tragédias da 1ª metade do século XX, respeitou, e continuou fazendo o seu trabalho. Podia ter sido 10, 5 vira. E o Neuer ainda ficou p… com o gol sofrido!

  2. Brilhante! Tenho uma teoria sobre isso tudo, que talvez se encaixe no texto, e possa ser fruto de uma reflexão. Se tinha uma coisa que os brasileiros, desde 58, sempre puderam se gabar, é o talento nato para o futebol. E pode se observar que qualquer time ou selecionado brasileiro sempre vai buscar no craque este diferencial. E pior, isto chegou aos professores com o “eu ganhei, nós empatamos, eles perderam”. A Alemanha não teve pena. Se fosse o contrário, pararia nos 4 e começariam as canetas

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