Imagens (por Mauro Jácome)

 

O futebol é algo intenso, que vivo grande parte das vinte e quatro horas diárias a que tenho direito. Tudo que vai passando gera imagens que guardamos ou desprezamos. Boas ou ruins, insignificantes para uns, marcantes para nós, ao longo do tempo, vão deixando as referências para que, em determinados momentos, consciente ou inconscientemente, sejam revividas.

Com relação às minhas memórias, várias se acumularam e, aleatoriamente, visitam-me.

A primeira imagem que tenho do Fluminense é da invasão de campo no título carioca de 1971. Assisti em uma TV preto e branco e não me lembro bem se aquelas imagens eram da validação do gol contestado pelo alvinegros ou da comemoração do título pelo time tricolor. Era uma multidão dentro de campo.

Depois, lembro-me de meu pai socando a cadeira vermelha no Fla x Flu do título de 1973. Os tocos de cigarro voavam do cinzeiro de metal a cada pancada no estofado. Meio assustado, fui para o quarto. Sei lá, podia sobrar para mim.

O gol de Doval contra o Vasco no bicampeonato de 1976, no final da prorrogação, ficou em mim por anos. Mais do que o de 1975, o título do ano seguinte foi marcante e atribuo isso ao momento do gol. Nunca me esquecerei daquele atacante cabeludo saltando entre os zagueiros adversários e raspando a bola para o chão. Acho que ali se intensificou a relação do Fluminense com os minutos finais dos jogos importantes.

Certamente, qualquer tricolor tem no gol do Assis, em 83, uma das suas imagens inesquecíveis. No estádio ou na TV, o lance ficará para sempre. No entanto, mais do que o próprio gol, a cena das almofadas reviradas, do cinzeiro no tapete e do joelho sangrando, devido à comemoração, ficará imortalizada.

Há momentos em que, depois de certas atitudes, ficamos arrependidos. Na minha vida de torcedor, uma das principais bobagens que fiz foi atirar meu radio contra a parede naquele gol do Leandro, do Flamengo, no Fla x Flu de 84, que elasteceu o campeonato. Era um rádio-gravador, que se transformou em vários pedaços. Mesmo ferido de morte, continuou gritando aquele maldito “gooooooooooooooooooool”. Merecia sobreviver e remontei-o com o que era possível recuperar. Ainda tinha uma missão a cumprir: gritar o gol de Assis, o gol do bicampeonato.

No ano seguinte, os gritos ininterruptos da torcida, no segundo tempo da decisão contra o Bangu, em 85, ficaram cantando na minha cabeça por muitos anos. O incentivo descomunal embalou o time naquele maravilhoso segundo tempo, propiciando aquela virada histórica. Várias vezes, assisti ao VT somente para ficar arrepiado com a manifestação da massa tricolor no Maior do Mundo.

Entre os campeonatos de 85 e 95, licenciei-me de torcedor fanático e assumi uma postura distante. Acompanhava, mas friamente. Talvez, a morte de meu pai, cúmplice de paixão, tenha me afastado. Talvez, tudo que se relacionava à bola de futebol ficara sem graça. Talvez, tenha perdido o significado de torcer. Talvez, em respeito, sentia-me inerte. Foram mais de dez anos sem imagens. Espécie de um Maracanã com ninguém nas arquibancadas, sem jogo, de madrugada, sem refletores.

A bela campanha no hexagonal decisivo de 95 reavivou a minha paixão. Num rompante, resolvi assistir ao Fla x Flu decisivo in loco. Provavelmente, esse jogo é o de que mais tenho lembranças. Imagens do desespero com a possibilidade de não entrar por falta de ingressos, da chuva dentro do estádio, do bandeirão, do espetacular primeiro tempo, dos torcedores chorando com o empate, dos torcedores chorando com o gol de Ailton (não sabíamos, ainda, da barriga). No entanto, a cena que mais me marcou foi a que envolveu o gol de empate. A seguir, reproduzo parte do texto que escrevi em comemoração aos 100 anos do maior clássico do universo (Fla x Flu de pai para filho):

Foram seis minutos até o empate. Os urros disformes acompanhavam a bola, que vinha pela direita. Fabinho avança, os urros arrefecem-se. Fabinho chega próximo à área, os urros quase desaparecem. Fabinho entra na área, dribla para fora, corta para dentro e chuta. A expectativa pelo gol acabara com os urros. A bola desliza pela rede. Contraditoriamente, o silencio ainda é total; ainda a inércia do desenrolar do lance.

Em frações infinitesimais do tempo, levanto os olhos para a massa do lado de lá. O desequilíbrio entre as velocidades da luz e do som é demonstrado naquele instante: vejo os movimentos dos corpos, mas não escuto nada. Silêncio do lado de cá; o som que ainda não chegou. De repente, uma agressão, uma pancada no tórax. Os urros dantes, agora multiplicados, chocam-se contra nós. Um estrondo inigualável, real somente em filmes de ficção, atravessa-nos e joga-nos de encontro ao cimento cinza dos degraus. Os urros, mais disformes, brotavam, também, do chão, da grama. O cérebro balançava. Nunca tinha visto nada igual. E nunca mais vi…”

Após aquele título, muitas imagens foram armazenadas, mas prefiro deixá-las trancadas, presas em arquivo, na pasta “Assuntos Desagradáveis”. Se alguma merece destaque, talvez, a demonstração de amor no assalto da torcida ao Maracanã, na estreia da segunda divisão contra o ABC. Estava lá. 10 mil tricolores aguardavam o jogo. De repente, 50 mil tricolores, em pouco mais de meia hora, ocupavam aquelas, ainda cinzas, arquibancadas.

Voltei ao Maracanã em 2005 para assistir à final do Campeonato Carioca contra o Volta Redonda. A festa foi linda, mas a torcida gritando “sai do chão, sai do chão, a torcida do Fluzão”, fazendo tremer toda aquela descomunal estrutura foi fantástico. Até hoje sinto a vibração nos meus pés.

A última lembrança que estava fixada foi a de um lance da final da Libertadores de 2008: Washington ajeitou a bola para Thiago Neves que, desequilibrado, bateu fraco de direita, mas a bola ia passando por Cevallos, que, milagrosamente, tocou de ponta de dedo e desviou a bola, que raspou a trave e saiu. Isso tudo aos 14 minutos da prorrogação. Nunca revi nada que se relacionasse àquele jogo e, por isso, não sei se as minhas visões são verdadeiras ou imaginação. Talvez, uma alucinação. Algo que desse mais dor ao meu sofrimento, afinal, seria o gol do título.

Finalmente, consegui suplantar o trauma e substituir aquelas imagens que me acompanharam por muitas noites quando encostava a cabeça no travesseiro. Por mais que tentasse não pensar naquilo, que desviasse e esvaziasse a cabeça, a bola raspava a luva e a trave. Quisera eu, por muitas vezes, voltar no tempo e aproximar o Thiago da bola para que, com mais força, impossibilitasse a reação do goleiro. Nunca tive coragem de rever os lances daquele jogo, sempre mudei de canal, mas o lance desobedecia e me invadia.

Agora, a todo o momento, a defesa do Cavalieri e o gol do Fred, o do título, contra o Palmeiras passam no meu visor. Até as editei e fiz do gol uma sequência da defesa. O reflexo do goleiro, que se antepôs à trajetória, atirando-se e impedindo a virada que, certamente, empurraria para a rodada seguinte a comemoração do tetracampeonato, parece que foi algo premeditado. Quem sabe tenha sonhado com o lance?

O gol do Fred foi aquilo que os mais antigos rotulam de “uma pintura”. A jogada em si, a visão do Jean ante a cantada do centroavante, foi de rara sincronia e inteligência. No entanto, a batida do Fred é o exercício prático da Física. Quando se joga tênis, aprende-se que, se quiser dar mais força à batida, ao golpe, deve-se aproveitar a força da bola. Para tal, é preciso rebatê-la ainda na subida, após tocar o solo, acumulando a força ainda existente na bola com a do impacto da raquete. Fred sabe disso e pegou a bola ainda na subida. É o chamado bate-pronto. Convido a todos, a assistir ao VT do gol em câmera lenta. Fantástico.

Essas imagens são as minhas novas companheiras que, nesta semana e nas próximas, daqui a um mês, anos e, se existir, pela eternidade, estarão ao meu lado. O melhor é que se juntarão a outras que estão a caminho.

Bastidores

Não deixem de assistir aos quatro vídeos dos bastidores do Tetra. Interessante comprovar tudo que Abel, Fred e outros falam do ambiente:

http://www.youtube.com/watch?v=pHNjvPScHTU

http://www.youtube.com/watch?v=gASdHTJ3f34

http://www.youtube.com/watch?v=BTU-Pmz8-lY

http://www.youtube.com/watch?v=vpxKOctB6jM

 

Mauro Jácome

Panorama Tricolor/ FluNews

 @PanoramaTri

 Contato: Vitor Franklin

 Revisão: Rosa Jácome

3 Comments

  1. A final de 1971 contra o Botafogo eu estava no Maracanã, recém saído da adolescência. Só não invadi o campo. O bota era o favorito, tinha um timaço, mas naquele jogo o Flu jogou mais, em cima deles e eles na defesa para garantir o empate. O gol do Lula inaugurou, se ainda não existia, o chororô botafoguense, aliás protagonizado pelo PC Caju, sentado na bola no meio de campo, chorando copiosamente Acho que quem estava feliz era o Gerson, que mesmo jogando pelo alinegro, no íntimo ele estava feliz com o título tricolor. Desde aquela época, passando pelo Cuca, o time não parou mas de chorar, primeiro na fila de espera de, se não me engano, 15 ou 17 anos sem título, depois com reclamações permanentes exportadas para o galo mineiro neste ano.
    A festa da torcida foi linda e a gozação foi geral.

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