Gol de barriga: o jogo dos jogos

A colaboração do nosso amigo, o publicitário Fernando Antunes para este eterno dia 25 de junho.

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Era um campeonato em que não tínhamos chances. O clube meio falido contra o rival cheio de grana.

Eles montaram um time para ser campeão com tetracampeões mundiais e mais nomes de força. Romário, o melhor do mundo. Sávio, o eterno novo Zico. Luxerburgo, o técnico da moda. Até Branco, o nosso Branco, eles levaram. Enquanto isso, nós, praticamente, convidamos o “bichado” Renato Gaúcho de férias em Búzios. Trazíamos o esquecido Aílton, fechávamos com as incógnitas Lima, Ronald e Sorlei e ainda mantínhamos os duvidosos Djair, Márcio Costa, Lira e Wellerson. Até Ézio já era contestado. A imprensa e os bares decretavam um campeão meses antes daquele 25 de junho de 1995. Claro, não éramos nós.

Começamos perdendo para o Madureira em Conselheiro Galvão. A chacota atingiu níveis estratosféricos. Os salários atrasados mantinham o pessimismo. Apesar do empate em 0 a 0 na estréia de Romário e da vitória por 3 a 1 no segundo turno, todos já tinham um campeão. Esse era o ano do centenário do rival. Não tinha para ninguém.

Chegamos ao octagonal final como meros coadjuvantes. Todos os outros grandes com pontos de vantagem. Empatamos com o América. Perdemos para o Botafogo. Terceira rodada, o rival com 9, Botafogo 7, Vasco 5, Fluminense 1. Ficamos lá atrás. Todos somavam pontos, menos nós. Quem era a piada da cidade? Fluminense Football Club.

Veio o jogo contra o Vasco. Leonardo, preterido em São Januário, já tinha um destino: saiu de Três Rios para ser grande nas Laranjeiras. Entrou no lugar de Ézio, marcou dois gols e virou a partida, onde tivemos que marcar quatro vezes para o juiz validar três gols. Era a virada no que se entitula o time da virada. Era a nossa real virada de mesa no campeonato.

Viramos a mesa contra a chacota, mas ainda assim não tínhamos respeito. Os tropeços de Flamengo e Botafogo contra pequenos nos aproximou timidamente dos líderes. E o respeito chegou com aquele magnífico 4 a 3 contra o Clube de Remo no Maracanã. Outra virada espetacular!

Chegou a semana da decisão. Todos só falavam do Fla-Flu. E, a partir daqui, garanto a vocês, o que aconteceu foi algo cósmico, interplaneário, imensurável.

Meu avô, também Fernando Antunes, que me ensinou a ser Fluminense, decretou que iria no jogo comigo, apesar de diversos problemas de circulação em ambas as pernas que o limitavam de andar. Assim também fez meu irmão, Marcus, na época com nove anos de idade. Minha mãe, Dona Madalena, também tricolor, percebendo o possível cenário de um velho que pouco anda, uma criança e um adolescente apaixonado poderiam armar no Maracanã, também se convocou para a partida. Assim, comprei quatro ingressos antecipadamente que dormiram, durante toda a semana, aos pés da imagem de Nossa Senhora de Aparecida.

Morávamos perto do Maracanã e, mesmo assim, fomos para o estádio muitas horas antes do início da partida. A chuva ainda não tinha começado. Queríamos simplesmente evitar o confronto com a massa rubro-negra. Ledo engano.

A confusão na entrada predizia a dificuldade que seria a partida. Para os mais novos que estão lendo esse texto e não sabem o que é entrar em um estádio cheio sem filas organizadas, explico: era cada um por si e o cacetete da polícia por todos. Pense naquela imagem do trem indiano ou do metrô japonês. Era mais cheio que isso. Mais desorganizado que tudo. Empurrão pra lá, oportunistas metendo a mão no seu bolso pra cá. Resultado: a família se separa. Meu irmão e minha mãe pra um lado (de fora), eu e meu avô pra outro lado (de dentro).

E agora? Esqueçam. Não tínhamos celular. Mesmo que fosse nosso desejo, não conseguiríamos sair do Maracanã para encontrá-los. Seguimos eu e meu avô para as arquibancadas. Além da tensão do próprio jogo, subimos aquela rampa junto com a preocupação de como estariam minha mãe e irmão mais novo.

Encontramos o lugar, o da sorte, no último degrau da arquibancada, atrás do gol à direta das cabines de rádio – o nosso verdadeiro lugar no Maracanã. Após alguns minutos, a torcida rival já lotava a sua parte com gritos de extrema confiança, quando avisto de longe meu irmão e minha mãe, dentro do estádio. O impossível aconteceu. Eles conseguiram entrar no estádio, apesar de tudo. E, pasme, nos reencontramos no meio de 150 mil pessoas, com se alguém lá em cima tivesse manipulando as coisas. E, de fato, estava.

Cai a chuva, forte. As torcidas não se calam. Nós, com a força da minoria, eles com a conveniência da massa. Guerra de fogos de artifício, dentro do estádio. Bombas, tudo. Vai começar o maior jogo de futebol de todos os tempos.

E o primeiro tempo foi só Fluminense. A massa se calou, atônita. E eu nunca cantei tanto em uma partida de futebol. 45 minutos, sem calar a boca. Fora o antes e depois do primeiro tempo. Renato fez um, Leonardo fez dois. O suficiente para meu avô cantar o nosso hino comose fosse o seu primeiro Fla-Flu, ficar com o rosto e a careca toda vermelha e ser adotado por vários tricolores a nossa volta. Depois de dez anos sem títulos, no intervalo, todos queriam colocar no meu avô uma faixa de campeão. E, assim, voltamos para o segundo tempo: um time jogando muito, dois gols de vantagem, e umas dez faixas de campeão no ombro dele.

O segundo tempo começou e precisava ter acontecido daquele jeito para ser um jogo tão emblemático como foi. Romário nunca tinha feito gol no Fluminense. Fez. Branco, o nosso Branco, meteu uma daquelas faltas no nosso travessão. A massa, como já disse, conveniente, entra no clima e os discípulos traidores de Alberto Borgeth empatam a partida.

Festa nas gerais e arquibancadas rubro-negras. Tristeza e perplexidade do nosso lado.

Sem acreditar, abaixo minha cabeça e fico uns bons minutos sem assistir a partida. “O Ézio vai entrar, vai ser dele o gol”. Mas como ter tanta certeza de um time que já estava abatido e, naquela altura, com apenas nove jogadores em campo?

A certeza vinha de cima. Eles já entoavam o grito de campeão antes do fim da partida enquanto eu estava com um terço no bolso que pertencia ao meu pai, falecido dois anos antes. Peguei esse terço ainda no primeiro tempo para agradecer tudo que estava acontecendo. E recorri às forças divinas novamente após o prenúncio da catástrofe.

Olhei para o céu e depois para o campo. Ronald estava com a bola na direita. Tocou pra Aílton, preterido na Gávea. Meu corpo arrepia só de lembrar, só de escrever pensando cada corte que ele deu na defesa do Flamengo. Chute para o gol. Êxtase. Loucura. Pulei uns dez degraus daquela antiga arquibancada sem cadeiras. Pulei no chão cheio de água da chuva. Joguei meu avô e meu irmão para o alto. Dez anos, mermão. Dez anos. O Fluminese é o campeão.

Renato só fez o gol, pra mim, umas três horas depois, quando finalmente cheguei em casa. Mas, de fato, o gol de Aílton teve na barriga do Renato uma importância cultural e folclórica ainda maior.

Hoje, 20 anos depois, fica fácil por parte dos rivais menosprezar um título regional, tendo em vista a qualidade do campeonato atual. Mas quem viveu aquele 1995, sabe sobre o que estamos conversando.

O Fluminense foi Campeão de verdade, com C maiúsculo. Com todas as adversidades do campeonato, da fase final, do jogo, de entrar no estádio, da vida, de tudo. Naquele ano, a vitória do improvável, do indesejado. Do impossível.

E para quem é tricolor, como a minha família, sabe que o impossível é relativo e temporário.

Feliz 25 de junho para todos os tricolores.

@PanoramaTri

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