Quem levou o Fluminense à Série C? (por Felipe Duque)

Um grande historiador e geógrafo chamado Fernando Braudel, preocupado com a demarcação da temporalidade em diálogo com as mudanças do espaço, desenvolveu uma importante ferramenta analítica para as disciplinas em questão, que seriam as categorizações do tempo em “longa duração”, “média duração” e “curta duração”. Era uma forma de caracterizar desde mudanças mais amplas, com mudanças geológicas de milhões de anos, mediatas, como as transformações de civilizações de séculos, e até mais pragmáticas, como a intervenção real dos seres humanos na mudança espacial terrestre em anos ou curtas décadas.

Por isso é fundamental esse resgate temporal, para não cairmos em suposições sem a devida e apurada retomada das fontes e dos processos que culminam em decadências ou emergências. Dada essa introdução, o caso do Fluminense é exemplar nessa análise. Costuma-se, equivocadamente, taxar administrações que passaram pelo clube somente numa perspectiva gestionária, o que vai em desencontro a uma refinada compreensão do ethos e modus operandi que tal grupo x ou y trazem consigo. Isso vale para qualquer entidade! O grupo da situação traz consigo uma determinação do que julga ideologicamente compatível com suas articulações e isso impacta em seus associados, no caso específico de um clube de futebol, os seus torcedores.

A retórica estabelecida nessa década de 2010, por exemplo, de “austeridade fiscal para montar times medíocres”, tem capilarização em meio à torcida, o que reduz sua ambição junto a campeonatos, diferente de outros clubes como Santos ou Atlético-MG, que, embora estejam em situação financeira similar a nossa, adotam um programa de exigências para campeonatos e participação plena da torcida nas reivindicações.

Mas esse não é o ponto fundamental dessa discussão, trata-se do: “quem foi o responsável pela queda do Fluminense a série C?”. De antemão, para responder isso, é importante retornarmos ao final da década de 1910 e início de 1920, quando Arnaldo Guinle cria um complexo poliesportivo no clube das Laranjeiras, um dos maiores da América Latina, referência (que viria culminar na Taça Olímpica década depois).

Naquele período, o Rio de Janeiro era capital da república, um estado pujante, o Fluminense era um clube de referência nacional e Arnaldo Guinle um dos maiores empresários da América do Sul. Esse caráter tornava o Fluminense um clube indissociável das suas peculiaridades futebolísticas-olímpicas e sociais. Eram outros tempos, o futebol ainda engatinhava em popularização no país, vivíamos a época do amadorismo, ser sócio do Fluminense era uma notabilidade reconhecida pela sociedade carioca e brasileira.

Porém, com a profissionalização nos anos 1930, o Fluminense passou por uma primeira “prova de fogo”: se fechava em sua “cerca” de associados (a exemplo do Paulistano em SP) ou embarcava “de cabeça” naquele esporte que se popularizava ainda mais. Logicamente, seria constrangedor para o clube que trouxe e organizou o futebol no Brasil , que trazia “Football” em seu nome, optar pela reclusão em vez da profissionalização, e assim foi feito: o Fluminense, inclusive, tornou-se vanguarda da luta pela profissionalização do futebol no país.

Essa decisão tomou dimensões históricas e provocou a primeira “ciumeira” interna, mas não ainda uma cisão com a ala conservadora que viria se desenhando enquanto grupo político décadas depois, representada pelos Esportes Olímpicos e Social (João Havelange seria o grande regente desse grupo). Guinle atuava como mediador de conflitos pelo Fluminense, assim como outras grandes figuras, quadros nacionais e respeitados, que tomaram a direção do clube, o que era impeditivo para quaisquer rusgas.

A família Guinle tinha papel decisivo nos rumos do país e era assídua do Fluminense. Porém, três fatores foram determinantes para se desenhar essas novas movimentações internas a partir da segunda década de 1950:

a) A transferência da capital do Rio para Brasília e o enfraquecimento econômico do RJ;

b) O enfraquecimento da família Guinle e a intervenção do capital estrangeiro no Brasil;

c) A massificação do futebol no pós-construção do Maracanã.

Os dois primeiros se conectam diretamente, pois com o enfraquecimento econômico do RJ, naturalmente, clubes de outros Estados começaram a se posicionar com mais vigor no cenário nacional. O Fluminense, soberano como referência, entra em decadência, assim como a burguesia carioca frequentadora daquele espaço. O suicídio de Getúlio em 1954, que culminaria em 1964 com os militares no poder, pavimentou caminho para a abertura integral do capital estrangeiro no Brasil e a decadência de Guinle e de uma burguesia brasileira que frequentava o clube, trazendo desdobramentos de falência dessa relevância para a associação, constituindo uma categoria de burguesia decadente. Essa burguesia decadente, romântica dos tempos áureos, traz consigo uma opção: “exclusivar” o clube para os seus e, nesse sentido, o futebol que vinha se tornando um esporte de massas (principalmente, pós Copa de 1950 no Brasil) era um obstáculo.

A Taça Olímpica (1949) era o álibi que a burguesia decadente, pró-EOs e Social, necessitava. Inicialmente, não havia uma postura deliberada de “fim do futebol”, mas a linha de “exclusividade” do clube, inevitavelmente, levava a repudiar aquele esporte adorado pelos populares, ansiosos por frequentar Laranjeiras em dias de jogos. Isso foi determinante para se constituir uma fração “Esportes Olímpicos + Social” contra futebol. Algo que se desenrolaria na história e dividiria sempre os pleitos no clube. Os maiores exemplos são Francisco Horta (década de 1970) e Manoel Schwartz (1980), dirigentes pró-futebol, que incorporaram a demanda de torcedores de futebol, algo abominável para a burguesia decadente dos EOs e Social. Sofreram inúmeras implosões internas, mas suas ousadias permitiram que o Flu sobrevivesse mais algumas décadas e não tivesse destino similar ao do América.

Mas é agora que entramos na chamada “década horrenda de 1990” e a queda para a série C. De antemão é importante resgatar as disputas EOs+Social vs Futebol, tão comum que culminaria na vitória de Fábio Egypto em 1987, sequenciando quase uma década de poder nas mãos do grupo conservador. O futebol era destruído gradualmente, entrega de craques e ídolos, além de repasse de nossas joias (o time finalista do Bragantino em 1991 era formado em grande parte pelas joias da base tricolor). E assim, o plano dos EOs e Social iam ser calcificando, culminando nos rebaixamentos de 1996 e 1997, apesar do futebol ainda atuar autonomamente e reivindicar suas demandas, mas prejudicado por um estatuto retrógrado.

A esperança surge em 1998 com o grupo Vanguarda Tricolor, deslealmente e desonestamente maculado e responsabilizado pela queda na série C naquele período. Como falamos no primeiro parágrafo, a temporalidade para um historiador é um processo e fruto de diversos vetores políticos, geológicos etc. No nosso caso, em especial, cabe uma breve compreensão do que foi o processo que culminou em uma década de hegemonia do setor conservador (EOs + Social) e asfixiamento do futebol. A Vanguarda Tricolor surge como uma coluna de quadros a fim de resgatar um clube que se encaminhava a tornar-se uma associação de luxo para os moradores de Laranjeiras e cercanias.

A Vanguarda Tricolor, em seu manifesto, reitera a necessidade de revitalizar um clube em que o futebol se extinguia naturalmente. Com uma coluna de quadros das melhores habilitações (artísticas, administrativas, popular etc.), determinava uma saída para reestruturação do clube e uma mudança real para o sinistro projeto que se executava. A mesma assume em 1998 frente a uma Série B turbulenta e um regulamento esquizofrênico, tendo que lidar ainda com as pressões internas dos conservadores que os boicotava internamente. Salários atrasados e um caos instalado davam a tônica de carregar, corajosamente, um departamento de futebol maltratado por quase uma década de investidas. O legado do curto tempo (1998), dentre o caos, foi afastar integralmente o setor conservador e reaproximar a torcida do Fluminense em seu orgulho (inclusive, em um Maracanã abandonado pelo poder público, em processo de sucateamento e, possivelmente, que se transformaria em mais um shopping pela cidade).

Manifesto da Vanguarda Tricolor, embora o vinculem a série C, foi o grupo responsável por impedir a extinção do futebol no clube.

Porém, não existem super heróis e o resultadismo do futebol (de um regulamento com dez partidas), quis o destino que rebaixasse o Fluminense para a Série C no ano seguinte com mais cinco clubes. Mas a semente estava plantada, o setor conservador foi afastado provisoriamente do clube, a torcida retornou e o triunvirato que teria à frente David Fischel tomaria o clube buscando renascer das cinzas a destruição de uma década. E o capricho foi, nada mais nada menos, que a vinda da coordenação da seleção tetracampeã do Mundo em 1994.

Nesse sentido, deve-se resgatar a história para expormos que as fraturas de um clube não se dão em alguns meses, como, equivocadamente, leva o rótulo o grupo Vanguarda Tricolor, mas sim, desdobramento de décadas de destruição de uma entidade, a famosa temporalidade diferenciada que Braudel fala. Se hoje há espaços para a defesa do futebol dentro do Fluminense, a Vanguarda lançou sementes lá em 1998, pois, possivelmente, o Tricolor das Laranjeiras hoje estaria apenas nos livros de História como um clube recreativo, disputando divisões inferiores do campeonato carioca.

O papel do historiador é resgatar a processualidade a partir de fato dado, pois, nada é por acaso em nossa humanidade, e o torcedor tricolor muito deve saber a sua real história.

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