Fênix (por Walace Cestari)

“O passado não reconhece seu lugar:
está sempre presente”
Mário Quintana

Visitando a moderníssima sala de troféus do Fluminense, uma taça em especial chamou-me a atenção.  Sim, falo da conquista da série C de 99. Curioso, porque não foi – nem de longe – nossa maior conquista, mas ela está lá, como um totem ao nosso renascimento.

Sei que a maioria detesta lembrar esta época, contudo acho que é um passado que jamais deve ser esquecido. Vejo hoje uma série de torcedores reclamando de muitas coisas no clube e, talvez pela idade, quiçá pela amnésia, insistem em pular essa página da história, sem a qual não se entenderá nossa identidade.

Eu não. Forja-se o amor e a devoção pela dor. Nunca fomos tão tricolores. Nunca fomos tão pisoteados pela mídia. Nunca fomos tão unidos e fortes. Ao passar por aquela taça – redentora, ao fim e ao cabo –, fui transportado de volta ao inferno do ano de 98. E como a derrota serve para entender a vitória, trago a versão de alguém que acompanhou de perto aquele calvário.

O jogo era contra o ABC de Natal, adversário que nos derrotara na matutina estreia daquele campeonato. Era vida ou morte. Precisávamos da vitória para escapar de um inimaginável rebaixamento. Quem sabe, uma combinação fortuita e conseguiríamos vaga na segunda fase. Era crítica a situação. Respirávamos por aparelhos. Eu, estudante da Uerj, sem tostões no bolso, encasquetei de ir à Natal. Era dezembro.

O jogo, dessa vez noturno, foi marcado para o meio de semana. Havia eu de trabalhar na manhã seguinte. Restava-me a passagem aérea e todo o cansaço que pudesse causar. Valia pelo Flu. Como em campanha eleitoral, abri um “livro de ouro” e pedi a colaboração financeira de todos os amigos. Os tricolores, enfeitiçados com aquela obstinação, contribuíam com o sentimento de que estariam junto comigo no Machadão. Os adversários ajudavam ora pela amizade, ora pelo desejo do escárnio. Enfim, foi feito. Havia o pecúlio para o voo.

Com meu primo ao lado – que fizera o mesmo para arrecadar fundos – partimos para o Rio Grande do Norte. Festa e esperança. Chegamos, compramos ingressos e fomos para o hotel onde o Flu se hospedara, para incentivar nosso scratch. Não havia torcida na hospedaria. Apenas eu e meu primo. Muito bem recebidos, um integrante da comissão técnica fez questão de nos colocar no ônibus da delegação para o estádio. Era sonho.

O clima entre os jogadores era de profunda confiança. Lembro-me de Branco entrando no ônibus, batendo palmas e gritando “Vamos lá, isso aqui é o Fluminense!”. Partia a caravana, sem saber o futuro sombrio que a nós era reservado. Do jogo em si, não quero comentar. Sabemos bem o que ocorreu nas quatro linhas.

Fim da luta. Cabisbaixos e plangentes, descemos aos vestiários. Nunca vi igual tristeza em um ônibus. Ronaldo, o goleiro daquele campeonato, sacudia negativamente a cabeça. “Uma boa hora para voltar a fumar”.  Sérgio Cosme, de olhos embargados, dava entrevistas, buscando explicar o inexplicável. Branco trazia os olhos vermelhos de choro, a cara fechada e uma irreconhecível mudez.

Meu peito doía. Era como a perda de um ente querido. O ônibus, como a vida, engatou a marcha e seguiu em frente. Em meio a alguns que reclamavam do clube, inclusive sobre questões financeiras, havia uma imagem que jamais me abandonaria. Era a personificação do momento. A tradução da dor de milhões. O retrato da culpa de um julgamento vindouro. Sérgio Alves. No certame, ele desperdiçara a chance mais clara de gol que tivéramos. Seria nossa vitória. Não foi.

Sentado à janela, permanecia mudo. Tinha o olhar perdido nos céus potiguares. Toda a história de um clube pesava sobre os ombros daquele homem. O semblante revelava o vazio que lhe tomava conta. Parecia ter perdido a alma. Quase pude ouvir seus pensamentos, “Eu rebaixei o Fluminense”. A impotência ante a culpa açoitava-lhe o âmago. Sofri com ele. Somos humanos, somos falíveis. Condenados ao inferno. Reduzido às cinzas.

Mas, do cinza de nossa camisa fizeram-se outras duas cores. O Fluminense sempre foi mais. Aquilo era um desastre. Quase um Fukuyama, quase o fim da história. Não para nós. Nós somos a história. Por isso, não quero esquecer jamais este dia. Neste dia libertamo-nos de nossa aristocracia. Matou-se nossa soberba. Era o dia de nossa catarse. Ali morremos fidalgos para renascer guerreiros.

Walace Cestari

Panorama Tricolor

@PanoramaTri

Contato: Vitor Franklin

8 Comments

  1. Walace,

    muito bom ler algo escrito quando vem da alma e nos consegue alcançar no que temos de mais puro, os sentimentos…

    Valeu,

    Jorand

  2. Historia para escrever a historia do clube. Excelente…adorei, parabens! 🙂

  3. Paulo comenta: Walace, parabéns. Um dos melhores textos já escritos sobre este tema. Uma honra ter você aqui no time.

  4. Vivi também este momento tinha 17 anos em 99, vi todos os jogos pela tv por assinatura, foi duído, mas passou e hoje estamos em outro patamar. Comemorei o título, pois onde têm taça e o Fluminense a conquiste, nunca me cansarei de comemorar.

    Hoje vida nova, um dos melhores elencos do Brasil, prestes a ter um CT, patrocinador de dar inveja aos demais e principalmente, uma diretoria profissional e séria que caminha junto com o nosso crescimento.

    NÓS SOMOS A HISTÓRIA. NÓS PASSAMOS, MAS O FLUMINESE NÃO PASSARÁ JAMAIS.

    ST4

    1. Devemos nos orgulhar do que passamos. Não há motivos para nos envergonharmos do quanto erramos. São poucos que conseguem dar a volta por cima que demos.

  5. Excelente! São memórias que negamos, mas que servem de referencial para a reconstrução.

    1. É a morte a tragédia que valoriza a vida. E quantos podem morrer e renascer? O Fluminense pode. Temos mil vidas. Temos toda a história.

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