Farinha pouca, meu pirão… (por Rafael Rigaud)

farinha pouca

Caros amigos tricolores, hoje vou fugir um pouco do nosso tricolor e abrir espaço não para o link entre sociologia e o Fluminense, mas, de forma mais ampla, abordar o futebol e o estudo da sociedade. O motivo disso? Diante de tudo que temos visto no futebol doméstico e local nos últimos tempos, acho que vocês já devem desconfiar.

Já se sabe que o futebol é uma ótima ferramenta pra se estudar a sociedade, a sociologia do futebol (há um departamento da UERJ especializado nisso, inclusive) faz uso do futebol como pano de fundo para análise das sociedades que se pretende entender mais. Isso se dá não só por ser complicado dentro das ciências sociais e da sociologia se conseguir fazer uma análise totalmente isenta (já que, estando inserido na sociedade, não conseguimos ter total distinção entre o observador e o objeto observado – não podemos ficar a parte da sociedade para observá-la) e também pelo fato de ele absorver valores e características locais, adquirindo, então, o modo local, das pessoas, da cultura e do funcionamento daquela experiência de vida social.

Podemos ver em várias sociedades características intrínsecas da cultura local dentro das quatro linhas de qualquer grande estádio ou grande clássico. Na vizinha Argentina, nota-se a tensão social ser transportada pra dentro do campo de jogo a cada confronto Boca Juniors x River Plate (com xingamentos de ambos os lados por conta da disparidade entre o time dos ricos e das classes populares) e, aqui no nosso país, isso também acontece (sim, estou falando do clássico mais incrível do futebol, o Fla-Flu). Na Itália, o confronto que é transportado para o estádio é político, com Lazio e Livorno fazendo o clássico dos opostos ideológicos (a Lazio é o time da extrema-direita do norte da Itália, o Livorno é o time dos esquerdistas e comunistas, cada confronto entre as duas equipes demanda efetivo policial maior de que de muito clássico) e na Escócia, protestantes e católicos adotam times rivais e, não muito raro, vão às vias de fato com briga e às vezes mortes (o Rangers é o time dos protestantes enquanto o Celtic é o dos católicos).

Aqui, na Terra Brasilis, também podemos ver no futebol muito do que vemos de maneira pulverizada em muitos ambientes e situações que acontecem em toda parte. Temos, infelizmente, uma cultura onde o autoritarismo, a violência e a desigualdade são muito fortes e nos trazem muitos efeitos colaterais. A ideia de que não é preciso ter respeito nem apreço às regras, de que o importante é atingir seu objetivo de qualquer forma (na base de “os fins justificam os meios”), de que ser correto é ser “trouxa” e ser errado é “ser esperto”, de que o respeito não é fruto de civilidade e reciprocidade, mas através da imposição da força são frutos dessa cultura nossa. E como não podia deixar de ser, tudo isso que nos enoja e atrasa (sobretudo se comparado com outras nações onde a experiência de vida em sociedade é baseada em outros valores) é transposto também para os campos,arquibancadas e estádios país afora.

No último domingo, foi decidido o campeonato estadual do Rio de Janeiro onde Vasco da Gama e Flamengo disputaram a taça. O empate favorecia o time da praia do pinto e foi justamente esse resultado que o permitiu se sagrar vitorioso. O placar de 1×1 foi alcançado com um gol no apagar das luzes em um lance em que o atleta que empurrou a bola para o fundo das redes encontrava-se em posição irregular; porém, o gol foi aceito como válido e mudou a história do jogo e do torneio (a então vitória do cruzmaltino lhe permitiria levar para São Januário uma taça que há mais de dez anos é esperada por essas paragens). Ao fim da partida, a comoção dos vitoriosos foi transmitida para todo o país e me causou espanto e um grande desconforto não somente pelo fato de abrirem mais um campeonato em relação a nós e nos obrigar a vencer três estaduais para retomar a hegemonia que é nossa faz mais de um século – e que está temporariamente com a equipe da Gávea (sabemos todos que o campeão carioca do século XX é o tricolor de Álvaro Chaves) -, mas pela festa com um título que chegou de forma absolutamente irregular.

A explosão dionisíaca de alegria dos flamengos me fez ficar em dúvida se tal comportamento é disseminado na sociedade como um todo e também entre seus seguidores ou se é pulverizado por todos e mais ainda nestes. Porém, a frase “Roubado é mais gostoso” proferida irresponsavelmente (uma pessoa pública tem que ter noção da repercussão de suas palavras e, com um mínimo de discernimento, medir aquilo que diz, ainda mais quando se trata de um atleta que pode vir a ser ídolo de crianças país afora) pelo goleiro vermelho e preto ao ser informado de que o gol foi irregular, me puxou na memória todo esse emaranhado de fatos e informações sobre o que nós (brasileiros) somos, ou melhor, do que nós podemos vir a ser em determinadas situações. A não preocupação, em si, com qualquer parâmetro ético preocupa porque denota falta de respeito à lei, regulamento, norma, qualquer marco regulatório que se preze sobre o que pode e o que não pode mas o que vem à reboque é ainda mais apavorante.

O deboche, o escárnio, a empáfia, a arrogância, a prepotência e a marra que vieram acompanhadas da festa pelo título deixaram bem claro que o “se dar bem”, o “farinha pouca, meu pirão primeiro” (no sentido de que se não tem algo ser para todos, que seja pra mim do jeito que for, dane-se o resto), o ”a parada é ganhar, é isso que importa” e afins são glorificados enquanto um fim em si mesmo. A situação chegou ao limite do inaceitável quando o rival foi derrotado de forma assaz vergonhosa, viu seu torcedor se sentindo no direito de reclamar e teve este mesmo torcedor sendo impiedosamente achincalhado por se sentir no direito de reclamar pelo fato de ter sido derrotado de forma incrivelmente ilegal numa clara inversão de valores, onde “tirar onda” estando errado vem primeiro e reclamar com procedência é “choro de perdedor”.

Não tenho medo nenhum de afirmar que o clube de São Januário (enquanto time de futebol e instituição esportiva) perdeu o campeonato na tarde/noite de ontem, mas nós todos (enquanto apaixonados pelo futebol e enquanto cidadãos da sociedade brasileira) perdemos muito mais que uma taça.

Panorama Tricolor

@PanoramaTri

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