Fluminense da cor do mar (por Paulo-Roberto Andel)

Não lembro exatamente qual era o jogo, mas provavelmente era fora da cidade ou longe do Maracanã. Taça Rio, provavelmente. Senão eu teria juntado meus trocados e ido para a arquibancada.

Naquela época que, definitivamente, não era fácil mas que chega a me dar saudade quando penso em 2022. Uma barra pesada num país fraturado. O máximo que consegui foi um estágio sem remuneração no Hospital Pinel, foi uma excelente experiência. As pessoas não tinham emprego, choravam de fome, isso lembra alguma coisa?

A barra também estava pesada em casa. Meio dia e meu pai já estava bem alto. Álcool, tristeza e indignação, tudo temperado com pobreza e está à mesa um pacote explosivo. Só depois fui entender que era uma doença. Coitada da minha mãe, sofria, sofria.

Quebrando o porquinho, consegui comprar um walkman, aparelho de rádio e que também tocava fitas cassete, hoje objeto de coleção. Legal, você podia ouvir sua rádio predileta ou o som que lhe conviesse.

Meu pai desabou. Dormiu. Minha mãe ficou vendo televisão, algum jogo ia passar mas eu não queria atrapalhar. Resolvi ir para a rua. Tomei um banho e fui. Em quinze minutos já estava na Avenida Atlântica, num dia de sol meio retraído, sem praia cheia. Então caminhei em direção ao Leme, algo que sempre gostei de fazer na juventude.

Copacabana cheia de garotas bonitas, as do próprio bairro e as visitantes. Qual delas será tricolor? Não sei dizer, não usam a camisa do Flu, o negócio é imaginar. Enquanto isso, sigo escutando a Rádio Jornal do Brasil FM, que em seu cast de apresentadores tem um tremendo tricolor: Jô Soares.

Chegaram a ver o Meridien de perto? Era demais. Já trocou de nome, mas não cola outro.

Em certo momento, parei e sentei num banco do calçadão, perto de moradias tricolores de estirpe: Nelson Rodrigues, Nelsinho, Mário Neto, Valterson Botelho, Telê Santana. Eu e meu walkman à espera do Fluminense. Enquanto isso dava pra sentir o vento do Atlântico Sul, o mistério do horizonte que nunca termina, as pessoas deixando a praia rumo ao almoço em família. Eu, sozinho, e o Fluminense nos ouvidos, o Flu da cor do mar feito canção de Tim Maia, o oceano bem em frente. Não me lembro de outro episódio semelhante em minha vida de torcedor. Caso único. Sei que acompanhei, sei que torci, não me recordo de nada mas sei que foi bom.

É curioso não lembrar do jogo, porque minha memória é muito viva para muita coisa bem antes disso, mas realmente não sei dizer a respeito. Eu lembro dos jogadores: Ricardo Pinto, Válber e Torres (que zaga!), Luciano Carequinha, Donizete, Renato (que se chama Laércio), Edmilson (bom centroavante vindo do Criciúma mas que não emplacou), Sérgio Araújo, Marquinhos (que faria sucesso no Santos com o sobrenome Capixaba), Ronaldo Alfredo, Sílvio, Edgar (que jogou bola comigo na vila), Vítor. E o Paulo Emílio, claro. Ximbica, sempre.

Minha volta para casa não me traz desapontamento à memória, donde concluo que no mínimo empatamos. O Flu tinha aqueles times baratinhos com bons jogadores, tanto que vencemos a Taça Rio. Naquele ano não havia triangular. Jogamos com o Vasco, perdemos por 1 a 0 e demos o fora. Antes, o America bateu na gente mas já éramos os campeões do turno.

Do caminho de volta para casa não lembro, mas devia ser quase oito da noite quando cheguei. Bolinha Mãe e meu pai comiam cachorro quente. Peguei um para mim, pois estava com fome – não lanchei na rua, estava duro – eu vivia duro. Depois vi os gols do Fantástico, certamente. Parecia até que éramos felizes. Hoje, não: a tristeza é definitiva, mas pelo menos o Fluminense acabou de ser campeão. O Flu era amigos, família, lanche e resenha. Jogo de botão também. Era um time lutando contra cinco anos sem títulos.

E o melhor: terminado o jogo, não tinha a avalanche de “notícias”, “formadores” de opinião, pretensos intelectuais pernósticos, o cansativo jogo dialético dos senhores da verdade que nunca fizeram nada por merecer admiração, os dirigentes com melancia no pescoço. Só havia o próximo jogo e pronto.

Hoje todo mundo só vai falar do jogo da Sul-americana, o que é normal. Eu abri a cortina do passado e catei um pedacinho de tarde razoável, agora longe demais, demais. Não tenho mais Copacabana ao dispor.

Breve divagação sobre o bate-papo sobre futebol: desconfio que nós, tricolores do passado que insistem em permanecer no presente, por enquanto, éramos mais felizes. Tudo bem: o moderno traz coisas boas também, mas não para todos.

O que me resta sem walkman, sem Copacabana, sem pai nem mãe nem futuro? Esperar a noite, torcer e buscar um naco de alegria breve com o meu time. Sonhar com um cachorro quente. É o que sobrou.

Hoje ninguém fala, mas Válber e Torres jogavam demais. O Sérgio Araújo aporrinhava as defesas. Renato jogava muita bola. Me dá vontade de voltar àquelas Laranjeiras. Até quando eu nem lembrava do resultado, fazia sentido. Eu vivia duro, mas não devia a própria vida.

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Rita Lee está curada. Ainda há salvação.

2 Comments

  1. Parabéns pelos textos. Sempre emocionantes e acredito que muitos como eu se identifiquem com as historias. Ganhamos essa Taça Rio de 1990, pontos corridos, e na ultima rodada perdemos para o America no Maracanã o jogo da entrega da taça. Fui torcedor do futuro na Radio Globo nesse jogo.

    1. Andel: grande abraço, Rafa. Torcedor do futuro, como era legal aquilo. Parabéns.

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