Como desenhar a saudade? (por Paulo-Roberto Andel)

Desde que o mundo é mundo e a vida foi determinada por artifícios matemáticos feito horas, dias, meses, anos, chegamos a cada fim de dezembro e pensamos.

Pensamos.

O que passou, o que se foi, o que virá, o tal futuro que vira presente num estalar de dedos.

O que ficou mais longe, às vezes reabilitado por memórias, imagens, conversas e sonhos.

No futebol não poderia ser diferente: 2015 chega dentro de algumas horas, a torcida do Fluminense se enche de esperanças e incertezas.

Nesta manhã, eu penso nos domingos de muitos anos atrás, quando era apenas um pequeno jovem torcedor com todo o tempo do mundo.

Acordar cedo e já ter a expectativa de cruzar a cidade para comer um cachorro quente, tomar refrigerante cheio de espuma vendido pelos astronautas de branco com seus capacetes, olhar para cima e ver a nuvem branca de talco, olhar para o campo e ver o time todo de branco com onze craques – pouco importando se a realidade e a fantasia estavam de mãos dadas.

As pessoas simples ao redor do Maracanã: o vendedor de laranjas, de bandeirinhas, de pipas.

Os menininhos pobres pedindo esmola para comprar ingressos, geralmente chorando quando pegavam o papelzinho e passavam na roleta, descalços e sem camisa.

Os bancos de praça, onde se descansava antes da abertura dos portões – era bom chegar cedo, qualquer jogo lotava.

Os garotos das torcidas organizadas que faziam o programa de televisão, ao lado dos decanos.

O mar de bandeiras entrando junto pelo primeiro túnel de acesso à esquerda das cabines de rádio.

As celebridades, os artistas, os intelectuais, todos tricolores demais e apenas torcedores no grande circo místico das arquibancadas.

A multidão saindo do trem para a geral, com seus pares de chinelos, radinhos de pilha e empolgação.

A preliminar de juvenis, os craques meninos acabando com as partidas. Delano, Deley, Braulino.

Meu pai, sempre sério, me puxando pela mão.

Os sinais das rádios ecoando em todo o Maracanã: Globo, Tupi, Nacional. Música à parte nas cantorias.

Os torcedores juntos como se fosse uma família, tudo bem longe da limpeza étnica enrustida de hoje em dia. Ao contrário do que sempre se disse, embora o Fluminense tenha nascido na elite, tornou-se uma potência popular.

As pessoas que se abraçavam e cumprimentavam, sem mesquinharias pessoais ou sede de poder idiota. Era um Brasil da ditadura; estar no Maracanã era ter um pouquinho de liberdade.

Eu não precisei de um timaço do Fluminense para me apaixonar por ele para sempre. Vi pedaços da Máquina e engrenei mesmo em 1978, quando estávamos em crise por falta de títulos e dinheiro há monumentais dois anos.

De lá para cá, vi incontáveis voltas olímpicas, derrotas terríveis, dor, morte, drama, vitória, superação, dinheiro, miséria. Vida. Assim tem sido e espero que, nesse terço final que me cabe ainda por aqui, novas histórias sejam bem escritas.

Certa vez, li sobre o genial artista plástico Juarez Machado. Dizia ele que só seria realizado quando soubesse desenhar a saudade.

É o que eu procuro.

As lembranças, as desimportâncias, as pequenas histórias de amor entre um garoto e seu time de futebol nos dias mais felizes de sua vida.

Eu não sei desenhar a saudade, mas a sinto o tempo inteiro.

A dor de não ter mais quem me puxe pela mão.

Os vendedores humildes que desapareceram, assim como os menininhos pobres.

As bandeiras juntas.

O Careca em algum lugar no estádio. O Seu Armando. A Tia Helena. O Zezé. O Antonio. O Sérgio. O garoto chamado Maurício. Batucadas na mão do Dinho. Meu amigo Jorge Pinto. Gomão. Luizinho, então puxado pelo João Carlos. O Gota.

A certeza de que a camisa do Fluminense em campo era maior do que todos os seus inúmeros títulos e craques. Espírito coletivo acima de tudo. O timinho que sempre se mostrou timaço.

Desenhar a saudade é impossível.

Resta a grande tarefa do ano que vem: reviver o grande amor num estádio que já não existe, cujos freqüentadores já não existem, onde vaidades superam a união,  mas onde as três cores ainda são nome.

Nense.

O Fluminense que eu vivi.

Panorama Tricolor

@PanoramaTri @pauloandel

Imagem: jb

3 Comments

  1. Boa tarde,Andel!
    Cara você me emocionou e me inundou das lembranças que nesses meus 54 anos eu vi e vivi vendo o meu tricolor ,que vi a primeira vez em 1965 com apenas 5 anos de idade levado pelo meu pai e depois muitas outras vezes com camisa e bandeira e cresci vendo o velho maraca e seus personagens como você muito bem descreveu,éramos uma familia mesmo que por algumas horas.E são estas lembranças que alimentam o nosso ser Fluminense.
    Abraço,um 2015 de sucesso pra vc e ao nosso Tricolor!

  2. Sentimentos que revivescem à leitura de seus textos. Antes do puro e simples saudosismo, um retrato fiel do que o Fluminense representou e representará para todos nós que vivemos esses áureos tempos de pouca vaidade e muito amor. Parabéns!

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