“Apesar de você…” (por Paulo-Roberto Andel)

fracasso

Esta coluna é dedicada à memória de Paulo Maurício, o Tato, símbolo das arquibancadas do Fluminense, ex-conselheiro do clube, com passagens em diversas torcidas organizadas, como presidente inclusive da Young Flu, da Garra Tricolor e da Fôrça Flu, até chegar à querida Fiel Tricolor. O texto abaixo estava escrito minutos antes da notícia de sua passagem. Infelizmente, faz todo sentido por ocasião dessa perda irreparável ocorrida ontem.

Caros amigos,

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O Tricolor está confuso. Bem confuso.

Justiça seja feita, não é de hoje. Nem do ano passado. Do retrasado. Apenas piorou.

E as confusões naturalmente se propagam por diversos meios, gerando opiniões distintas, inclusive as que demonstram incapacidade de aceitar o contraditório, a contestação e a dialética. A opinião anti-opinião.

Mal que atinge o clube, a direção, o campo, a arquibancada e, claro, os jogadores.

Que diabo sucedeu no Fluminense para se transformar numa ode ao feudo?

Feudo no campo, feudo na arquibancada, feudo na direção?

O que aconteceu nos últimos dias é de estarrecer. Fazer pensar.

Menos pela contratação de um treinador que pode vir a dar certo, mesmo sem as menores credenciais para tal, muito mais pelo jeito de se tratar as coisas: desdenhar a opinião de muita gente importante que está aí na atividade e não entrou no ônibus agora, empáfia professoral que não vem acompanhada de sucessos que a sustentem, incapacidade de diálogo e articulação política, franca miopia ao se ver o torcedor como mero consumidor. “Participe! Seja sócio! (E não encha o saco: nós é que sabemos como se faz)”.

Um modesto palpite: a megalomania e a arrogância que hoje deterioram os cenários tricolores podem ter nascido em 2008. Apesar das fanfarronices do Sr. Barros em anos anteriores (que quase nos custaram a cabeça em 2003 e 2006), a derrota na final da Copa Libertadores foi uma espécie de Hiroshima. Terra arrasada. Trucidou corações e mentes: como aquele momento mágico podia terminar daquele jeito? Para alguns, exigia uma “New Order”. Pode ser que a onda de divisionismo e a esdrúxula definição de uma “etnia tricolor” advenham disso. A verdade é que já se passaram quase sete anos e, mesmo com o Fluminense ganhando importantes títulos, reconhecimento internacional e respeito nacional (contra a vontade de parte da imprensa esportiva), uma certa atmosfera tricolor ficou contaminada. Talvez os anos sem Maracanã – e sua reinvenção através de um monstrengo – tenham afastado de vez o clima de outrora. Isso, claro, além de anos como 2009 e 2013.

Nas últimas temporadas, o caos do Flu tem extrapolado o ambiente de jogo: determinadas atitudes de pequena parte da torcida (convém não generalizar), sejam no estádio, nas redes sociais ou no clube, são tão constrangedoras que, há muito, para ser minimamente razoável comigo mesmo, removi do meu vocabulário costumeiro uma expressão popular: “mulambada”, eternizada por Washington Rodrigues e que acabou voltada contra o time de seu coração.

2

Não consigo entender a origem de tanto ódio, tanto divisionismo, tanto preconceito, tanta queima das páginas da história, tanta irracionalidade por parte de alguns tricolores em relação a tricolores. A progressão desse ódio, aí sim, é fácil de entender: basta que um sujeito estenda a mão e outro estenda uma cusparada.

A simples diversidade de ideias resulta em um chamar o outro de imbecil, idiota ou filhodaputa (aka Leminski) num Facebook qualquer, até que na primeira troca de olhares no Maracanã, moleques machões se borram, os falastrões se encolhem e ninguém sabe ao certo com quem está falando. Quando divergentes começam um diálogo e deixam as armas de lado, a turma do “quanto pior, melhor” prega o rancor.

Definir quem é “mais” ou “menos” tricolor. Argh! Estupidez.

Em trinta e cinco anos, o Fluminense (quase) teve paz política em um único governo: o do Dr. Manoel Schwartz. Tempo de gente sincera, que agia conforme as palavras ditas antes.

De lá para cá, temos vivido céus e infernos porque somos incapazes de dialogar no bojo, de mostrar respeito mínimo ao próximo, de não subestimar a capacidade intelectual do outro, de aplicar o uso do tempo em propostas positivas e concreta em vez de “sofisticada” verborragia. Quem assume o governo tem as fórmulas mágicas, quem não concorda é idiota e a conta fica no passivo do clube. Quem passou é apenas pilanta, incompetente, como se o presente fosse a perfeição.

E pensar que já fomos exemplo de politização, chegando ao ponto de organizar greve e protestos pacíficos (merecidíssimos) em pleno Maracanã contra arroubos da diretoria, ensinando o país. Era 1982, laudo cadavérico da ditadura cívico-militar, mas que ainda existia e assustava.

Bombom x Maumau. A fatura? Rua Álvaro Chaves, 41.

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Queira desculpar. Estou de saco cheio.

Cheio da mediocridade e do nivelamento por baixo.

Cheio da empáfia e da incapacidade de entendimento entre situação e oposição, numa faixa de Gaza interminável, embora entendendo porque parte dos ânimos se acirram.

Cheio do oportunismo de plantão a mostrar suas garras.

Cheio de ver que a torcida mais bonita e politizada do Brasil está abrigando feudinhos da estupidez, rasgando as bandeiras do passado e desrespeitando a história.

Cheio de ver a verborragia oca dos smartphones “sociais” que não se traduzem em participação direta no clube, na torcida e em nenhum lugar.

Cheio de ver jogadores mandando torcedores tomarem na cloaca em instagram, tuíter e na Globo.

Cheio de ver gente querendo me tratar como idiota ao falar de estatísticas para contratar um profissional de qualquer coisa – já antecipo que é muito difícil conversar comigo praticando charlatanismo estatístico.

Cheio de ver essa merda de poder transformar-se numa verdadeira cocaína para seus usuários deslumbrados.

Cheio desses pequenos clientelismos, favorecimentos pessoais, peitos de pombo, senhores das fórmulas perfeitas enquanto o grande histórico tricolor em números frios dos últimos 30 anos é: estaduais de 1985, 1995, 2002, 2005 e 2012; brasileiros de 2010 e 2012; Copa do Brasil de 2007.

Quem não parou ainda para pensar que, se não fosse essa bosta de desunião e ódio no clube e na arquibancada, teríamos ganho muito mais?

Cheio.

Esse Fluminense aí das manchetes, das falácias, da arrogância, do maniqueísmo, não é o meu. De jeito nenhum.

Garoto de gerais e degraus de cimento daqueles anos 70, sinceramente eu merecia mais hoje como torcedor. Não falo de títulos e grandes craques, meu amor pelo Flu já está acima disso: quero dizer de paz e harmonia, presentes no hino que parte da nossa sociedade de três cores tem desrespeitado diariamente.

Paz e harmonia. Quem se lembra?

Decorar isso deveria ser uma obrigação tricolor. Mais do que isso, exercê-las.

Um torcedor do Fluminense respeitando um torcedor do Fluminense, sem imunidade para dirigentes e autoproclamados majores tricolores.

Em tempo: quando o Tricolor estava no pior momento de sua história, a torcida era unidíssima em plena terceira divisão contra Serras, Anapolinas e congêneres.

A torcida era unidíssima quando lotou o Maracanã às 11 da manhã pela segunda divisão contra o ABC, num desastre pontual que custou anos, carreiras e maledicências ainda a serem reparadas pela literatura.

E ainda conseguiu ser unida ao menos mais uma vez: na luta de vida ou morte em 2009 – no que aqui, com justiça, ressalto a importância pontual do Sr. Celso Barros.

Perto desse divisionismo vil, asqueroso, odioso, cair para a terceira divisão não é nada.

Ser rebaixado em campeonatos não é desonra, embora terrível e indesejável – a desonra é fugir, dar para trás, em falar uma coisa e fazer outra. A desonra é ser traíra e jogar baixo. A desonra é pregar o ódio e editar a história.

Eis nossa pior derrota. Poucos percebem.

4

Logo mais tem jogo. O Fluminense em campo no Maracanã às sete e meia da noite.

A única coisa que, neste momento, vale a pena.

O resto é de doer.

Boa sorte ao Sr. Drubscky à beira do campo. Que consiga o que ainda não obteve em 20 anos de carreira, sinceramente. Quem tem padrinho não morre pagão, felizmente.

Vou escrever pela última vez: nada tenho contra a figura do novo treinador e pode até ser que dê certo, mesmo com probabilidades humílimas. O que achei abominável foi a justificativa (ou o mar delas) para sua contratação, contrastando-se com seu histórico no futebol. Mais incrível ainda quando se alega que Drub tem um “perfil e estilo profissional parecido com o de Cristóvão”; assim sendo, então qual o sentido de se mandar embora o antigo treinador? Reclamações da torcida não contam; afinal, se fosse o caso, Drub não teria sido efetivado. Mas que tenha toda a sorte do mundo – e vai precisar mesmo.

Houve quem falasse de treinadores que eram “iniciantes” e funcionaram nas Laranjeiras. Aproveito para elencar os bem sucedidos desde 1968 (opção “modinha”: a história que vi).

1) Telê Santana (1969): Dispensa apresentações.

2) Paulo Amaral (1970): Quando treinou o Fluminense, já tinha passado por Botafogo, Vasco, os italianos Juventus e Gênova, o Bahia e, de quebra, criou o cargo de preparador físico de futebol no Brasil.

3) Zagallo (1971): Dispensa apresentações.

4) Duque (1973): Ex-jogador do clube, treinador heptacampeão pernambucano por Sport, Santa Cruz e Náutico.

5) Paulo Emílio (1975): Antes de chegar ao Fluminense, o treinador foi campeão capixaba, amazonense, pernambucano e baiano.

6) Mário Travaglini (1976): Treinador campeão paulista e brasileiro com a Academia do Palmeiras; também brasileiro pelo Vasco.

7) Nelsinho (1980/1985): Até aqui, o único treinador que tinha uma trajetória modesta, pois tinha apenas três anos de profissão. Tinha sido campeão capixaba. No entanto, foi um dos maiores jogadores da história do futebol brasileiro e logo mostrou serviço à beira do gramado. Voltaria a ser campeão carioca no Flu em 1985 e brasileiro pelo Vasco em 1989.

8) Carbone (1983): Também iniciante à época, tinha apenas um ano de profissão. Cracaço dos anos 60 e 70, tendo jogado por Botafogo e Inter. Depois do Flu, ganhou títulos no mundo árabe, no Peru e no futebol paraense.

9) Parreira (1984): Dispensa apresentações.

10) Carlos Alberto Torres (1984): Dispensa apresentações.

11) Joel Santana (1995):  Antes, tinha treinado Vasco, Bahia e times árabes, sendo campeão em todos. Também havia trabalhado no América.

12) Robertinho (2002): Com sete anos de carreira, tinha passado por equipes modestas, mas tinha grande experiência como futebolista no Brasil e no exterior, acostumado a times grandes. Craque formado nas divisões de base do Flu, campeão em 1980.

13) Abel (2005/2012): Dispensa apresentações.

14) Renato (2007): Já era uma autoridade em treinar o Fluminense, tamanha a obsessão que alimentava em Celso Barros. Herói imortal do Centenário.

15) Muricy (2010): Tricampeão brasileiro, bicampeão pernambucano, campeão gaúcho, paulista, mexicano e chinês antes de chegar ao Flu.

Termanada a lembrança dos treinadores campeões, por que eu pediria para a torcida do Fluminense comparecer ao jogo? Afinal, Mário Bittencourt já disse que o foco está no Brasileiro e na Copa do Brasil. Quem sou eu para contestar? “Falou, tá falado, não tem discussão não”.

Oxalá vença a Cabofriense e o Barra Mansa. E que ninguém seja suficientemente pueril a ponto de dizer que, em caso de seis pontos, “o treinador não tem que provar nada a ninguém”.

Existem limites para tudo, até para o ridículo.

5

Ao escrever esta coluna, pensei em pessoas que militam seriamente no clube, inclusive sofrendo boicotes evidentes, sejam nas lidas profissionais ou políticas, e muitas outras, que representam o meu Fluminense – que não sei onde foi parar dentro da minha tristeza. Alguns mais bravios, outros mais serenos. Todos tricolores. Quando todos aprenderemos isso?

Recordo as palavras de Pasquale Amato, símbolo tricolor, em 1979 à revista Placar: “Existe no Fluminense uma panelinha difícil de desfazer, é muito complicado”.

Num tempo em que as pessoas ouviam os outros, deu certo: um ano depois, o Tricolor era um grande campeão. Tropeçaria depois nas trapalhadas de R. A. Magalhães, para viver mais adiante o momento mágico dos tricampeões.

Newton Graúna, Roberto Alvarenga, Faria.

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“O último a sair apague a luz do aeroporto”

(Ivan Lessa, nos tempos da ditadura que os ignorantes fingem não ter existido).

7

Você chegou até aqui. Muito obrigado por aguentar o meu desabafo, escrito numa sala branca fechada e solitária. O desabafo de um torcedor do Fluminense que não entrou no ônibus ontem, nem é candidato a coisa alguma, nem será, que busca uma luz eleitoral para a proxima disputa tricolor, que não tem candidato definido mas já tem certeza em quem não votará. Um torcedor que sente agonia ao entrar num Maracanã que não foi apenas demolido materialmente, mas socialmente também. E não se reconstrói bons sentimentos com facilidade neste caso.

A minha dor eu costumo viver sozinho, mas desta vez não teve jeito. Um abraço.

Que em 2016 o Fluminense se reencontre com a sua própria história, preferencialmente num (improvável) tributo coletivo ao Dr. Manoel Schwartz.

Eu lembro de 1984 com orgulho. Não sei qual vai ser a memória dos jovens senhores em 2046, nem estarei por perto para conferir. A vida não espera. Só os arrogantes não percebem.

Panorama Tricolor

@PanoramaTri @pauloandel

Imagem: google

the wall

11 Comments

  1. Triste, mas real. Como diz o nosso hino” quem espera sempre alcança” . Vamos torcer, amigo! Precisamos do nosso Flu para alegrar nossas vidas.

  2. Bom dia Andel!. Bonito o seu texto. O problema é que eles não sabem que o ódio só traz maus fluídos para o clube e os jogadores.

  3. Que suas palavras sirvam de ponto de partida para abrir mentes teimosas e buscar a união (de verdade) das forças TRICOLORES!
    SSTT4!!!!
    Braxxxx, grande Paulo e TODOS os tricolores de verdade!

  4. A propósito, Silvio Kelly ainda está entre nós e não tenho visto muitas homenagens.
    Melhor fazê-las em vida.

  5. Parabéns pelo texto, muito bom e escrito vi a alma.
    Pontos a contribuir, esqueceu de mencionar o título de 1995 em cima do centenário da mulambada.
    Outro ponto, só tivemos o Manuel Shuartz em 1984 pois antes dele teve Silvio Kelly que saneou o Flu,que quase quebrou na administração “Horta”, e montou o timaço do tricampeonato em 1983.
    De quebra trouxe Xerém.
    Parabéns mais uma vez pelo texto.
    Abs
    Waldo

  6. Força aí, meu camarada,
    seu diagnóstico retrata muito bem o FFC e nossas vazias arquibancadas, embora muitos dos que lá não estejam não saibam definir muito bem o porquê da própria ausência e, infelizmente, essa atmosfera é contagiante.
    Perdão, corro o risco de te desagradar, mas lembre-se que poderia ser pior, Carlim e Bruno ainda poderiam estar no Laranjal… Atualmente me divirto mais vendo os jogos dos Xeretas e sigo minha busca pessoal por esperança.

    RIP Tato.

    Abs

  7. Está de parabéns colega!
    Foi o texto mais triste, mais lúcido e mais real que já li sobre o Fluminense.
    É o texto que eu gostaria de ter tido sensibilidade de escrever.
    Leio diariamente o Panorama, mais vou prestar mais atenção a partir desse
    seu texto. Foi ótimo ilustrar com a música do tricolor Chico Buarque.
    Saudações tricolores!

  8. Continuando…
    Toda só faz perder para si próprio, concordo com você que poderíamos ter levantado muitos mais títulos. Vamos torcer para que as coisas dentro de campo se acertem, mesmo sabendo que esse treinador não é a altura do nosso time de coração, o que é possível perceber é que os nossos dirigentes atuais não tem noção do tamanho que é esse tal de FLUMINENSE.
    Respeito e saudações tricolores.

  9. Paulo, li todo o texto.
    Como torcedor de arquibancada, não tenho muitas informações da política do club, não sou sócio, não frequento as Laranjeiras, mas sempre procuro obter informações de pessoas que sabem o que dizer a respeito do nosso Fluminense. Fiquei triste com o texto e o seu desabafo o futebol é algo mágico, muitos abandonam filhos, mulher, pais e parentes, mais pouco abandonam o seu time de coração, por isso compreendo o seu desabafo e entendo que o nosso Fluminense com essa guerra…

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