A melhor companhia (por Ernesto Xavier)

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O menino bate bola contra a parede. Está sozinho. Não tem companhia para sua brincadeira favorita. Em sua imaginação consegue ver um estádio lotado, com a torcida vibrando a cada drible seu, passes perfeitos, domínio de bola no peito, um carrinho salvador que salva a bola em cima da linha. Ele viaja.

-Lá vem ele, toca para a direita, corre pra receber, vem o zagueiro, ele dribla, deixa o outro no chão. Vem mais um. Toca por debaixo das pernas. Olha pra frente. Faz um lançamento espetacular. Walter chuta. O goleiro defende. Que espetacular! A bola sobra. Quica na sua frente. Ajeita, aponta e chuta. Silêncio no Maracanã. A bola bate na trave. Corre mansamente por cima da linha. O goleiro tenta tirar, mas…é gol! Goooooooooooooool!!!!!!! É dele! É dele!!!! Mateus!!!!!!! A torcida grita seu nome e vai ao delírio. Um gol chorado! Um gol salvador! É o gol do título do Fluminense!

O garoto pega a bola e olha a sua frente o muro de chapisco. Não há torcida. Não há estádio. Não há time a acompanhá-lo.

-Vem almoçar logo, Mateus. Sua comida vai esfriar.

-Já vou, mãe. Deixa só eu dar mais um chute?

-Nada disso. Você já ultrapassou sua cota. Daqui a pouco seu pai vem aqui te buscar pra te levar pro jogo.

-Eu não quero ir.

-Por que isso agora? Não era você que queria tanto ir ao Maracanã?

-Mas meu pai quer me levar no jogo do Flamengo. Eu sou tricolor, mãe. Igual a você.

-Seu pai torce pro Flamengo. É natural que ele queira que você seja igual a ele.

-Mãe…se fosse bom ser igual ao meu pai, você ainda estava com ele.

-Não fala isso, Mateus. Tem coisas de adulto que você não entende ainda.

-Entendo sim. Você que me acha bobo. Quase todo mundo na minha sala tem pais separados.

-E o que isso tem a ver?

-Ué… A gente conversa, né?

-Tá. Mas vamos parar de conversa fiada, vamos comer e depois você vai tomar banho pra esperar seu pai.

-Inventa que eu to doente, mãe. Por favor! Eu não quero ir.

-Você tem que ir, meu filho. Você prometeu.

-Mas não era isso que a gente combinou. Ela acha que sou criança. Não adianta. Não vou virar Flamengo e pronto.

Em seu íntimo a mãe suspirava aliviada. Não ia querer ver no filho o espelho do homem que não a fez feliz como prometera perante o padre 12 anos antes. Não que a questão do time tenha sido relevante, porém a imagem dele bebendo cerveja em frente à televisão aos domingos, com a casa cheia de outros amigos torcendo pelo Flamengo era algo marcante. Não queria que a cena se repetisse. Ela mesma àquela altura não ligava muito para futebol. Gostava, entendia, sabia o que era linha de impedimento, tinha de cabeça o time campeão de 70. Culpa do pai tricolor fanático. Félix, Oliveira, Galhardo, Assis, Marco Antônio, Denílson, Didi, Cafuringa, Cláudio, Mickey e Lula. E ouvia na memória a voz do pai: “Não pode esquecer o Flávio e o Samarone”. Lembrar daquela escalação era como ter a presença do pai. Iam juntos às Laranjeiras, ao Maracanã, à Moça Bonita, São Januário. Onde onze jogadores trajassem o escudo do Fluminense, lá estavam eles. Em abril de 1982 ele morreu. Anos depois ela lamentou que ele não tenha visto os três anos que se seguiram. Nunca mais pisou em um estádio de futebol. O sentido daqueles jogos transcendia o campo. O Fluminense não era só uma paixão. Era a admiração pelo pai, o carinho que recebia, o abraço forte em cada gol.

-Acabei de comer, mãe. Vou tomar banho.

-Filho… Vou ligar pro seu pai e inventar uma história, ta?

-Sério???

-Aham. Olha…é segredo nosso, ok?

-Eu gosto do papai…é que Flamengo não dá, né?

-É filho…não dá. Vai e toma seu banho. Coloca a camisa do Fluminense que eu te dei no natal porque hoje tem jogo do Flu em Bangu.

-Bangu? Onde fica isso?

-Faz tempo, mas eu ainda lembro. Vai. Se arruma logo.

Nunca viu o menino tão cheiroso. Lindo com a camisa tricolor. Ela iria agora ensinar a escalação de 70 para ele e muito mais. Seus domingos não seriam mais os mesmos. Voltaria no tempo e imaginaria o pai junto a eles dois. Agora era o seu momento. Em algum lugar no universo, aquele velho pai daria um sorriso e diria: “Não esqueça, filha. Flávio e Samarone. Eles também foram importantes. E que gol do Mickey. Que gol!”

Panorama Tricolor

@PanoramaTri @nestoxavier

2 Comments

  1. Bela matéria. Lembrei-me de papai levando-me às Laranjeiras menino.

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