1984 – XVI (por Mauro Jácome)

1984 – Capítulo 16 – O torcedor e o jogo

1984 – Capítulo 16 – O torcedor e o jogo

Talvez, o torcedor tricolor de hoje, compreensivelmente, não tenha a mesma sensação – quase certeza – que tínhamos em 1984: a de que, quando o Fluminense ia a campo, a vitória estava garantida. Paulo Vítor, Ricardo, Branco, Delei, Assis, Romerito, Washington, Tato, Paulinho entravam em campo com o olhar dos vencedores. As previsões davam que o Fluminense seria o campeão. Aquele time não perderia o título:

BOLA DIVIDIDA (Sandro Moreyra)

A facilidade com que o Fluminense venceu a primeira partida com o Vasco leva a gente a acreditar que o time tricolor possa sair hoje do Maracanã para comemorar, na Praça da Apoteose, o título de campeão brasileiro de 84. Naquele jogo a supremacia técnica e tática do Fluminense foi completa. Em nenhum momento o Vasco chegou a ameaçar de verdade, e seu time teve até sorte de ser derrotado pela diferença mínima de um gol (JB, 27/05/1984).

Eu estava lá. Foi o meu primeiro jogo no Maior do Mundo, no estádio mais famoso do planeta. O palco que já tinha apresentado o inigualável Pelé, a arte chapliniana de Garrincha, a genialidade de Rivellino, as avalanches arrasadoras de Ademir, as esperanças que Telê, a fio, carregava, as defesas, as traves e a estrela de Castilho, a raça de Edinho, a categoria de Samarone, os lançamentos de Gerson, as folhas-secas de Didi, a agilidade de Félix. Por que não dizer, a velocidade de Robertinho e Zezé, o futebol vistoso de Cléber, a elegância de Pintinho, o oportunismo de Mickey, a eficiência de Denílson, o faro de gol de Waldo. Enfim, ali estava a essência do futebol.

Até então, só conhecia o Maracanã da TV, dos impressos, na imaginação. Em 1984, fazia Economia na Católica. Um colega de faculdade me convidou para ir, numa caravana, ao jogo decisivo. Chamei o Toninho, um primo que meu pai e eu ajudáramos a se consolidar como tricolor, e fomos. Saímos na sexta e chegamos sábado à tarde. Cada um se arranjaria na Cidade Maravilhosa até o reencontro, no domingo, para que o ônibus nos levasse para o jogo. O combinado era que chegaríamos cedo para nos ambientarmos. Poucos do grupo haviam estado lá antes. Passava do meio-dia e estávamos na entrada da estátua do Bellini.

Ainda mantenho algumas lembranças de antes do jogo, do lado de fora: a chegada das torcidas, a movimentação. 14 horas, abrem-se os portões. Até um frio na barriga deu. O trajeto pela rampa passou tão rápido que nem vi.

À medida que, passo-a-passo, saindo do buraco escuro que dá acesso à arquibancada, a visão ficava ofuscada pela claridade do campo. Aquele verde brilhante iluminado pelo sol contrastando com o azul das cadeiras, com o cinza do concreto do andar de cima, com o pedaço ovalado de céu azul.

Num jogo que acolheu mais de 130 mil, ao entrar, pouco mais de 200 pessoas lá estavam. Ansiedade, era muita ansiedade. Valeu a pena. Devo ter ficado uns 5 minutos só olhando. Procurava cada detalhe que minha memória trazia dos jogos da TV, dos jornais, das revistas Placar. O teto, as cabines da imprensa, a geral, o fosso, as cadeiras azuis do andar debaixo. Para mim, aquelas cadeiras eram o sinal do tamanho do público de um jogo. Pelas imagens delas na TV, tentava adivinhar o público: quanto menos azul, mais gente no estádio; se sumia, tinha mais de 100 mil. Ainda dentro dos meus minutos de admiração, olhei as bandeiras de escanteio, as redes dos gols.

Debaixo de meus pés, talco, papel picado, serpentina, tocos de cigarro, copos descartáveis. Resquícios do jogo do meio de semana. Não limparam o estádio depois do jogo anterior.

Aos poucos a multidão foi entrando. Na arquibancada, prosseguindo a linha do meio-campo, havia um cordão de isolamento formado por policiais. Tricolores para um lado, vascaínos para outro. Na geral, não. Batizado como o local mais democrático do mundo, misturavam-se todas as raças. Lá embaixo, o azul das cadeiras foi desaparecendo e o concreto das arquibancadas foi sendo substituído pelo verde, branco e grená, pelo branco/preto.

Do nosso lado, o ar começava a ficar embaçado, devido ao talco que, em saquinhos de pipoca, era distribuído e que deveria ser usados na entrada do time em campo. Muitos não tinham paciência e jogavam o pó-de-arroz para cima ou despejavam nas bandeiras e as desfraldavam, enfumaçando a atmosfera tricolor.

De vez em quando, subia um balão. Reza a lenda que, se o balão alcançasse o céu, o time ganharia. Então, cada um que subia, levava a nossa expectativa. Depois, uma euforia ou frustração. Mas sempre tinha um que, pelo tamanho, atraía mais a atenção da torcida. Geralmente, tinha algo pendurado. Uma bandeira. Lá foi um balão grande, construído nas três cores que traduzem tradição. Era pesado, difícil de subir. O fogo por dentro tentava dar combustível necessário para que não frustrasse a torcida. Subia um pouco, descia, pendia para um lado, o fogo chegava perto do papel, parecia que ia incendiar-se, subia um pouco. A cada movimento, os olhos grudados no objeto. Inconscientemente, fazia com que os gritos tentassem orientar o trajeto. O balão desceu forte, sumiu da minha linha de visão. “Deve ter caído na geral”, pensei. Mas surge rápido e dirige-se ao centro, em cima do círculo central. Talvez, de propósito, para que todos pudessem acompanhar o espetáculo e torcer, contra ou a favor. O balão, prenúncio do título, subiu, subiu, saiu do ambiente do estádio e alcançou o céu. A corrente de ar o empurrou para longe. Um ensurdecedor “Nense” tomou conta do estádio, fez o concreto tremer. Eu não escutava minha voz. Eu era só grito, dentro daquele Nense coletivo.

Faltando alguns minutos para começar o jogo, não se enxergava o campo. A opacidade chegou ao limite quando o Fluminense entrou em campo. Bandeirões imensos, encharcados de talco, eram levantados do chão e aumentavam a densidade do ar. Nem mais um palmo à frente do nariz se via. Era só áudio, não tínhamos imagem. Os gritos, naquele momento, eram desencontrados. Gritava-se de tudo, não se via nada.

Aos poucos, discerne-se daquela miscigenação sonora o hino nacional vindo da banda lá no gramado. Abruptamente, o som muda-se para “1, 2, 3, 4, 5, 1000, queremos eleger o Presidente do Brasil. 1, 2, 3, 4, 5, 1000…”. O coro, que começou tímido, quase que com o medo paranoico da, ainda, ditadura, ganhou força, encorpou-se, tomou conta da arquibancada. Gritavam o norte, o sul, o leste, o oeste. No começo, 10 mil. Depois, 50 mil. No fim, 130 mil. O estádio gritou por democracia. Até hoje, ouço aquele coro.

Começa o jogo, mas ainda estávamos cegos pelo pó-de-arroz. Deixamos de ver, pelo menos, 5 minutos. Uma brisa dissipou o talco e pudemos acompanhar os movimentos em campo. Admirava a sincronia da torcida com o movimento do time. Ao ser atacado, o coro de Nense era baixo, nervoso, apreensivo. Ao recuperar a bola, o grito crescia e ajudava a empurrar os jogadores. O som alternava. Os “uuuuuuuuuuuuus” das bolas perigosas foram poucos ao longo do jogo, mas uns dois ou três contra a meta de Roberto Costa, foram seguidos de um Nense ensurdecedor.

Além da memória desses dois ou três lances de perigo ao gol vascaíno, poucas outras coisas guardei do jogo jogado lá embaixo. No entanto, da coreografia das arquibancadas, dos coros, das músicas, dos movimentos, nunca esqueci. Apesar de coadjuvante, o torcedor faz o papel principal no espetáculo paralelo das arquibancadas. Olho no campo, olho na torcida. Às vezes, esquecia e ficava preciosos segundos contemplando aquela massa. Uma peça de teatro não ensaiada, mas perfeita.

Já no fim do jogo, a torcida ensaiava os gritos de “é campeão”, principalmente, depois de um gol, incrivelmente, perdido por Assis. De repente, aos 40 do segundo tempo, tudo para: Arturzinho recebeu de Marcelo, entrou livre na área, pelo lado direito. Eu estava atrás do gol oposto ao de Paulo Vítor. O ex-tricolor avançou, bateu cruzado, o sangue congelou, a respiração parou. Ninguém tinha mais o coração funcionando. Nosso goleiro defendeu com os pés. Foi a primeira e única vez no jogo em que ouvimos alguma manifestação da torcida vascaína. O coração voltou a bater. E bateu mais forte.

Dali em diante, a torcida tricolor não tinha mais dúvidas do título. Tudo era comemoração. Só quem já esteve lá, quem passou por essa e incontáveis outras experiências semelhantes, entende o porquê de todas essas lembranças. Essas emoções nunca mais saem de nós.

No próximo capítulo, o jogo.

Até lá.

Revisão: Rosa Jácome

Foto: www.flusocio.com.br

Capítulo 15: www.panoramatricolor.com/1984-xv-por-mauro-jacome/

4 Comments

  1. MUITO BOM MAURAO, PARABENS…. EU LEMBROATE HJ A PRIMEIRA Q FUI AO SERRA………

  2. Que emoção Jácome, sentíamos quando entrávamos ‘no maior do mundo’!

    A nossa torcida é um show à parte!

    Mais uma vez, parabéns pelos excelentes textos!!

    Saudações tetracampeãs!!

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