1970 – Parte 3 (por Mauro Jácome)

Palmeiras, Atlético, Cruzeiro e Fluminense foram para o quadrangular final do Robertão de 1970. Pelé, Rivellino, Carlos Alberto Torres, Zanata, PC Caju saíram de cena e foram fazer amistosos. Férias? Eram outros tempos. A profissão de jogador de futebol não tinha a regulamentação de hoje. Às vezes, uma semaninha entre o natal e o ano novo e olhe lá!

Mas muitos torcedores ainda puderam ver em campo Félix, Leão, Raul, Renato, Eurico, Baldochi, Fontana, Marco Antônio, Piazza, Denílson, Dudu, Ademir da Guia, Natal, Samarone, Dirceu Lopes, Tostão, Flávio, César, Lola, Lula. E nos túneis: Telê Santana, Rubens Minelli. Como se dizia antigamente, parecia o Butantã, tamanha a quantidade de cobras em campo.A semana entre a rodada final da fase classificatória e o início do quadrangular final foi sacudida pela pretensão do Flamengo de tomar a vaga do Fluminense. O rubro-negro pleiteou os pontos de seu jogo contra o Corinthians. Jornal do Brasil, de 09/12/1970:

“O Flamengo entrou ontem com um recurso no Tribunal Especial, a fim de ganhar os pontos do jogo contra o Corinthians por causa de Zé Maria, e deseja também que o início do returno do Gomes Pedrosa seja suspenso até o pronunciamento da Justiça Desportiva sobre seu recurso. (…) A alegação do Flamengo é que Zé Maria é um jogador que está sub-judice, devido à briga da CBD com seu ex-clube, a Portuguesa de Desportos, que considera ilegal a transferência do zagueiro para o Corinthians. Por esse motivo o Flamengo acredita que poderá ganhar os pontos.”

Não bastasse a tentativa do Flamengo de melar o campeonato, o Atlético reclamava da tabela do turno final:

Atlético ameaça sair das finais se partida com Flu não for em Belo Horizonte

“O Atlético continua protestando contra a tabela do turno final do Gomes Pedrosa, e fala até em abandonar o torneio caso a CBD não marque a sua partida contra o Fluminense para Minas Gerais, independente dos resultados das duas primeiras rodadas.

Ninguém no clube se conforma que a equipe, após conseguir a classificação com grande sacrifício, seja a única prejudicada pela tabela, e a diretoria justifica uma possível saída do torneio logo após o jogo de domingo contra o Cruzeiro, com a alegação de que os jogos seguintes, fora de Minas, seriam um fracasso financeiro.”

O país vivia um clima de grande tensão em virtude do sequestro do embaixador da Suíça. Numa época em que as comunicações eram primitivas, comparadas aos dias atuais, a contrainformação era utilizada para confundir ou mesmo brincar com os órgãos estatais. Muitas mensagens assumindo a autoria eram recebidas. Todas falsas. O tempo passava sem definição e deixava o país nervoso e com medo.

Governo espera lista de 70 presos para salvar a vida do Embaixador” (manchete do JB, de 10/12/1970).

O governo militar estava atônito, porque esse tipo de investida dos grupos de resistência expunha, interna e externamente, a ditadura. Cá dentro, o governo se sentia fragilizado e imobilizado para impedir, abafar ou mesmo massacrar ações desse porte. Temia as investidas que davam certo. Poderiam servir de exemplo. E serviram por algum tempo, até a vitória final da força bruta.

Ante os olhares do mundo, sentia-se constrangido: a forma da “guerra” colocava muita gente em perigo e qualquer medida mais dura, principalmente quando envolvia alguma personalidade estrangeira, poderia expor de vez o mecanismo de terrorismo estatal e, assim, o governo perderia a complacência de importantes segmentos da comunidade internacional. Desde o recrudescimento do regime, a partir do final de 1968, pouco das atrocidades que se cometiam nos porões da repressão ultrapassava as fronteiras do país. A forte censura impedia, por menor que fosse, qualquer manifestação de protesto e, principalmente, de denúncia.

Não era somente na América do Sul que as ditaduras causavam vítimas e impunham suas regras e lógicas de perpetuação no poder à revelia do povo:

Franco suspende garantias na Espanha por seis meses

“Um conselho extraordinário de ministros convocado pelo Generalíssimo Franco decretou ontem o Estado de emergência em toda a Espanha, suspendendo por seis meses o Artigo 18 da Constituição – o que permite a prisão por tempo indefinido de qualquer pessoa suspeita, no entender do Governo – além das garantias de inviolabilidade do domicílio, do direito de reunião e do sigilo da correspondência.” (JB, 15/12/1970)

Voltando ao futebol, tapetão (Flamengo perdeu por 9 x 1 no tribunal) e chororô pré-histórico à parte, o campeonato seguiu em frente. A rodada do final de semana estava mantida: o clássico mineiro e o jogo entre Fluminense e Palmeiras. Ambos foram realizados no dia 13 de dezembro, domingo.

Do lado tricolor, Flávio continuaria fora. Mickey, o substituto de Minuano (apelido de Flávio dado por Geraldo José de Almeida em referência ao nome dado ao vento que sopra os pampas), declarava com humildade: “compreendo perfeitamente a minha situação. Sei que se o Flávio tivesse condições, ele seria escalado, mesmo que eu esteja em boa forma. Mas o meu dia está para chegar. Sempre tive muita paciência e ela é a minha maior aliada” (JB, 16/12/1970). Seria mesmo a hora e a vez da consagração de Mickey:

Boa vitória dá ao Flu quatro pontos na tabela

“Embora evidenciasse que seu time já não possui a mesma força física e técnica demonstrada no início do Gomes Pedrosa, o Fluminense derrotou com méritos o Palmeiras, e, com o empate em Minas, ganhou quatro pontos na rodada. O jogo foi fraco no primeiro tempo quando o time paulista teve um ligeiro domínio, com sua defesa e o meio-campo jogando bem, mas com um ataque inoperante (…) Mesmo jogando menos, o Fluminense conseguiu o seu gol na fase inicial, quando Mickey levou vantagem sobre Nelson no pulo e cabeceou com violência e no ângulo para a surpresa de Leão, que ficou desequilibrado” (JB, 15/12/1970).

FICHA TÉCNICA

FLUMINENSE 1X0 PALMEIRAS, Maracanã, 13/12/1970

FLUMINENSE: Félix; Oliveira, Galhardo, Assis e Marco Antônio; Denilson e Didi; Cafuringa, Mickey, Samarone (Silveira), e Lula (Wilton). Técnico: Paulo Amaral.

PALMEIRAS: Leão; Eurico, Baldochi, Nelson e Dé; Dudu e Ademir da Guia; Edu (Copeu), César, Jaime (Fedato) e Pio. Técnico: Rubens Minelli.

GOL: Mickey aos 34’ do 1° tempo.

ARBITRO: Armando Marques.

RENDA: Cr$ 225.423.50.

 PÚBLICO: 50.421 pagantes.

Analisando o momento do futebol brasileiro, em meio às finais da Taça de Prata de 1970, Armando Nogueira faz uma análise interessante sobre o Santos e chama o Fluminense para o centro da argumentação na sua coluna no Jornal do Brasil do dia 16/12/1970, da qual reproduzo alguns trechos:

 “Na hora em que quatro grandes times disputam a taça mais importante do futebol brasileiro, vejo com profundo desapontamento a decadência do Santos – o Santos que, há 10 anos, exibe nos campos do mundo a legenda admirável de equipe número um de nossos dias.

 De repente, no ano da glória maior de um tricampeonato mundial, o time do Santos dá a impressão de agonizar, marginalizado das duas maiores competições da temporada nacional: o Campeonato Paulista de Futebol e a Taça de Prata.

 (…) Todo mundo sabe que, depois do Mundial, a maioria dos campeões passou a dar dores de cabeça aos respectivos clubes: o Santos sofreu e sofre esse problema, o Botafogo sofreu e sofre esse problema. Mas, vocês já pensaram no Fluminense? Lá, os campeões, depois de festejados devidamente, foram devidamente enquadrados. Marco Antônio, que é um garotinho, nem chegou a preocupar. Por que isso? Porque o Fluminense procura, hoje mais do que nunca, manter seus jogadores num regime profissional realmente sério. Pode até não durar muito o regime vigente no Fluminense. Mas, por enquanto, o Fluminense destaca-se como clube exemplar no futebol brasileiro.”

Nos anos 60 e 70, vivia-se intensamente a Guerra Fria. Desde o final da segunda guerra mundial, EUA e URSS disputavam a supremacia econômica, política e ideológica no mundo. O embate ocorria desde disputas militares em terreno alheio, com vidas alheias, até a corrida espacial. À paranoia Capitalismo x Comunismo, países de todos os continentes foram arrastados, fazendo milhões de vítimas. O mundo foi forçado a enxergar pelas duas óticas prevalecentes. A Crise dos Mísseis em Cuba, as Guerras da Coréia e do Vietnã, o Muro de Berlim, OTAN, Pacto de Varsóvia, as ditaduras sul-americanas, CIA, KGB, Casa Branca, Kremlin eram algumas das manifestações diretas e indiretas que algemavam o mundo e obrigavam-no a escolher um lado. Por diversas vezes, essa bipolaridade tangenciou uma nova guerra mundial: a tão temida terceira guerra, numa era de grandes investimentos em pesquisas nucleares. Percebe-se a tensão em que vivia o mundo de fins de 1970 por algumas manchetes do Jornal do Brasil da época:

EUA bombardeiam por 8 horas Coréia do Norte (JB, 07/12/1970)

Sul-vietnamitas matam 36 vietcongs perto da capital (JB, 07/12/1970)

Washington propõe trégua de um mês na guerra vietnamita (JB, 08/12/1970)

Terroristas explodiram refinaria nos EUA (JB, 08/12/1970)

Espionagem soviética na América Latina aumentou (JB, 09/12/1970)

Flu defende liderança em jogo difícil com Cruzeiro

“O Fluminense defende a liderança isolada da fase final do Torneio Roberto Gomes Pedrosa, enfrentando o Cruzeiro, esta noite, no Estádio Minas Gerais, quando uma vitória o deixará em situação excepcional com relação ao título, principalmente se o Atlético, seu próximo adversário, empatar ou perder do Palmeiras, em São Paulo” (JB, 16/12/1970)

Flávio continuaria de fora com problemas musculares. O Fluminense seguiria com Mickey no comando de ataque. 

O tricolor entrou em campo inimigo e, frente-a-frente com o esquadrão celeste de Tostão, Piazza & Dirceu Lopes, seguiu fielmente a histórica receita do 1 a 0:

Flu dá de 1 a 0 e é campeão se empatar domingo

“Ao vencer o Cruzeiro por 1 a 0, gol de Mickey aos 35 minutos do primeiro tempo, ontem à noite no Minas Gerais, o Fluminense ficou em situação privilegiada para conquistar o Torneio Roberto Gomes Pedrosa, bastando empatar com o Atlético Mineiro no próximo domingo, em jogo marcado para o Maracanã. 

O Cruzeiro esteve melhor durante a partida, mas o time carioca soube se defender e explorar muito bem os contra-ataques, através de Lula. Além do mais teve contra uma atuação facciosa do juiz Sebastião Rufino, que permitiu a violência dos mineiros, foi agredido por eles no segundo tempo e acabou expulsando Samarone só porque ele chutou para longe uma bola” (JB, 17/12/1970). 

FICHA TÉCNICA

CRUZEIRO 0X1 FLUMINENSE, Mineirão, 16/12/1970

CRUZEIRO: Raul; Lauro, Brito, Fontana (Darci Menezes) e Vanderlei; Wilson Piazza (Palhinha) e Zé Carlos; Natal, Tostão, Dirceu Lopes e Rodrigues. Técnico: Hilton  Chaves.

FLUMINENSE: Félix; Oliveira, Galhardo, Assis e Marco Antônio (Toninho); Denilson e Didi; Cafuringa, Mickey (Silveira), Samarone e Lula. Técnico: Paulo Amaral.

GOL: Mickey aos 35’ do 1° tempo.

ÁRBITRO: Sebastião Rufino.

RENDA: Cr$ 127.688.00.

PÚBLICO: 25.924 Pagantes.

EXPULSÃO: Samarone.

Félix foi o maior destaque

“Félix, evitando com grandes e seguidas defesas o gol de empate do adversário, e Tostão, buscando com o talento e a categoria de sempre este mesmo gol, acabaram se constituindo nas grandes figuras da partida (…) bem seguidos por Denílson, pelo Fluminense, e Brito, pelo Cruzeiro” (JB, 17/12/1970).

Em sua coluna diária, Na Grande Área, que mantinha no Jornal do Brasil, Armando Nogueira gostava de exaltar os craques da época. Félix, o Papel, era um craque sempre reverenciado. Trechos de duas colunas que definem bem o que representava o goleiro para o Fluminense e para o futebol brasileiro:

“O goleiro Félix chega ao final do turno de classificação com a mesma cotação do começo: é, sem dúvida, o melhor goleiro do país. Anteontem, em Curitiba, segundo depoimentos autorizados, fez quatro defesas de assombrar” (JB, 07/12/1970).

“Analisei, ontem, o jogo Fluminense, 1 x Cruzeiro, 0, mas acho que não cheguei a dizer tudo sobre o comportamento técnico e disciplinar dos jogadores. Por isso, volto ao assunto, hoje, em flashes:

1) Impecável a atuação do goleiro Félix, notadamente em dois lances: numa bola que mudou de rumo depois de bater no corpo de Didi. Félix já havia armado o bote numa direção e, de repente, foi obrigado a trocar bruscamente os comandos, pondo a bola a corner com um soco magistral; depois, numa saída em que fechou o ângulo de chute de Dirceu Lopes. Dirceu tocou a bola entre Félix e Galhardo, a bola saiu pela linha de fundo. Dirceu errou? Não, ele fez a única coisa que a correta posição de Félix lhe permitiu fazer” (JB, 18/12/1970).

Para completar a felicidade da torcida tricolor e deixar o Fluminense isolado na liderança, o Palmeiras passa pelo Atlético:

Palmeiras ganha fácil do Atlético

“O Palmeiras derrotou o Atlético Mineiro, ontem à noite, no Pacaembu, por 3 a 0, com gols marcados por Edu, César e Ademir da Guia, todos no segundo tempo.

O time paulista dominou totalmente seu adversário e o Atlético perdeu por ausência de um ataque mais agressivo” (JB, 17/12/1970).

Para não tornar, ainda, mais extensa essa coluna, paro por aqui e, na próxima, termino com o jogo que deu o título ao Fluminense.

Até lá.

1970 – Parte I: http://www.panoramatricolor.com/1970-parte-i-por-mauro-jacome/

1970 – Parte II: http://www.panoramatricolor.com/1970-parte-ii-por-mauro-jacome/

 
Mauro Jácome

Panorama Tricolor

PanoramaTri

Revisão prévia: Rosa Jácome

Fontes de pesquisa:

http://www.rsssfbrasil.com/miscellaneous/matflutpr1970.htm (Alexandre Magno Barreto Berwanger)

http://acervo.folha.com.br

Acervo do Jornal do Brasil

Mais diversos.

 

4 Comments

  1. Incrivel o retrato de um momento sócio político conturbado mundial paralelo ao futebol Campeão do Mundo.
    Mas incluo um trecho que parece saltar de 1970 para 2012… escrito pelo saudoso Armando Nogueira:
    (…)Mas, vocês já pensaram no Fluminense? Lá, os campeões, depois de festejados devidamente, foram devidamente enquadrados. Marco Antônio (leia-a se em 2012 Welington Nem, que tentou colocar umas asinhas de fora e foi podada), que é um garotinho, nem chegou a preocupar. Por que isso? Porque o Fluminense procura, hoje mais do que nunca, manter seus jogadores num regime profissional realmente sério. Pode até não durar muito o regime vigente no Fluminense. Mas, por enquanto, o Fluminense destaca-se como clube exemplar no futebol brasileiro.”
    Fantástico como depois de exatos 42 anos a frase se enquadra perfeitamente.
    Parabéns Marco Jácome.
    Aguardamos o epílogo.

  2. Estive em baixo de um toró daqueles no Maraca vendo o gol do Mickey quando fomos campeões! Empatamos com o galo gol do Buião e mais uma vez laranjeira ficou pequena prá tanto torcedor. Campeões da elite do futebol brasileiro!

  3. Quero ler o capítulo final, estou ávido. Escreve logo, Mauro, não demora!
    Parabéns pela forma contagiante e cheia de detalhes como você está escrevendo essa história. Estou me revisitando naqueles tempos. Eu estive no Maraca, debaixo de chuva e sob uma enorme bandeira tricolor. Que alegria. Eu me orgulho de ter visto o primeiro título nacional do Fluminense. Eu estava lá!

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