Seis meses da Libertadores, uma queda anunciada (por Raul Sussekind)

A debacle do Fluminense não começou agora. Ela se anunciou meses atrás, antes ainda da final da Libertadores. Foi no returno do Brasileiro. Fizemos questão de ignorar os quase 50 gols sofridos. Foram 3 em casa contra Grêmio, Corinthians e Goiás. Mais 4 do Vasco e 3 do Cuiabá. Vaidade. Ego. São pecados capitais na vida e no esporte, mas traços característicos da personalidade do nosso treinador.

O desmoronamento se consumou ao permitirmos que nossa janela fosse aberta para as chegadas de Renato Augusto, Douglas Costa e Antônio Carlos. E ao investirmos 14 milhões de reais no Terans. Palmeiras trouxe Rômulo, um menino talentoso do Novorizontino, por 6 milhões. Não buscamos jovens valores. Fomos atrás de veteranos ou de jogadores em inegável declínio técnico. Os recursos orçamentários são escassos e, ao invés de privilegiar uma das melhores bases do mundo, fomos atrás de veteranos em fim de carreira.

Inebriados pela presença na final da Libertadores, fechamos os olhos para ros alertas do returno do Brasileiro. Veio a final e batemos o Boca. Ficamos cegos. Jogaríamos o Mundial. Fomos goleados por um Manchester City em ritmo de treino e ainda achamos um modo de bater no peito: não abrimos mão do nosso “estilo”. Veio a Recopa para apagar um pouco do vexame no Mundial. Vencemos porque enfrentamos um time que nos temia e abdicou de nos agredir. Podíamos ter perdido o título em Quito.

A temporada – isso ficou claro desde a “montagem” de elenco – seria difícil. Contrariamos o que a realidade berrava em nossos ouvidos: rejuvenesçam esse grupo. Fizemos questão de não ouvir. Era proibido criticar Diniz, Ganso, Marcelo etc. Quem o fizesse era o “torcedor modinha”. É só olhar os comentários de nossas redes sociais, não importa se as oficiais do clube ou de torcedores. As contratações de veteranos foram bem recebidas. “Renato Augusto vai revezar com Ganso”, diziam. Quem conhece Diniz devia saber que ele arrumaria um jeito de escalá-los juntos. Escolheu a dedo. Foi numa semifinal de Carioca, onde arruinou qualquer possibilidade de conquistar um tricampeonato. Nossa média de idade naquele Fla-Flu era de 33 anos. No dia seguinte o Liverpool enfrentou o Manchester City com um time cuja média era de 22 anos. A Espanha escalou um garoto de 16 anos contra o Brasil. A gente escalou um de 17 contra a Espanha. Remamos contra a corrente. E dispomos, nunca é demais repetir, de uma das melhores bases do mundo.

Diniz tem méritos inegáveis, mas também limitações importantes. Seus times jogam apenas de uma maneira. Não há variação. Não há contra-ataque. Essencialmente, não há transição rápida. Só passes curtos. O time joga eternamente uma roda de bobinho. Tenta envolver assim o adversário. Não há lançamentos longos. O time se torna previsível. Os jogadores não conseguem (ou não querem) fugir do “dinizismo”. Acreditam naquilo. É bonito no início. Funcionou no Fluminense como não funcionou em nenhum outro lugar. O embrião já estava aqui. Quem quiser, assiste o VT do Fla-Flu que nos garantiu o título carioca de 2022 (1×1). O pré-dinizismo estava ali nos pés do Ganso e com Abel Braga à beira do campo. É claro que o dinizismo real se encaixou à perfeição ao estilo dos jogadores que Diniz encontrou para trabalhar. Importante lembrar que o elenco de 2022 não foi montado por ele. Mas a verdade é que ele liderou um time que jogou o melhor futebol do Brasil e isso jamais será apagado ou deixaremos de agradecer. Foram momentos com muita magia. O problema é que o dinizismo tem prazo de validade. Alguns dogmas acabam engessando. Não pode dar chutão. Não pode sair em passes longos. Não pode jogar a bola para a lateral. Não pode transigir. Não pode mudar. Não importa se o adversário é o Manchester City ou o Madureira. E quem não comungar das mesmas crenças quase religiosas não é bem-vindo. Garotos carregam demais a bola. Driblam. Nem sempre querem tocar curto.

Colocamos nossas fichas nas mãos de um crupiê visionário e que viveu momentos mágicos no clube. O nosso grande futebol, aquele que encantou, foi jogado no segundo semestre de 2022 e no início de 2023. Havia novidade. Frescor. Vencemos a Libertadores porque tudo conspirou a favor, porque Diniz teve o mérito de sacar JK da cartola, porque esses mesmos jogadores veteranos têm caráter de sobra, porque os garotos estavam focados, porque nossa torcida foi a melhor da América e porque João de Deus olhou por nós ao longo dos 180 minutos contra o Inter. Mas vencemos a Libertadores já começando a nos distanciar dos melhores momentos. Quem se importava ali com os quase 50 gols sofridos no Brasileiro, com as sucessivas derrotas fora de casa?

O encanto agora está definitivamente quebrado porque não temos mais uma final de Libertadores para jogar e porque o Brasileiro está apenas no início. O Z4 nos assombra. Sempre assombrará.

A magia esgotou também porque dois anos fazem diferença quando se trata de jogadores que beiram os 35 ou vão chegar lá agora. Keno vai fazer 35. Ganso também. Marcelo vai fazer 36. Felipe Melo fez 40. Cano, 36. Renato Augusto, 36. E aí vamos lá e emprestamos quase todos os melhores valores da base, sem método ou estratégia. Felipe Melo, Ganso e Marcelo deviam gradativamente dar lugar a atletas mais jovens. Mas aí a gente empresta Jefté (ano passado ainda), Luan Freitas, João Neto, Johnny e agora Yago Ferreira, depois do ótimo Carioca. Arrogância, vaidade. Ficamos com Thiago Santos e emprestamos os garotos. Vimos já, em uma dezena de jogos, um Renato Augusto sem condições físicas de atuar num futebol a cada dia mais intenso e corrido. Felipe Melo, Marcelo e Ganso também não as têm, mas estavam encaixados num 11 titular que contava com Nino, André e Martinelli (ou Alexsander) para correr por eles. Dobramos a aposta alucinada. Vermelho, 27.

Agora não há muita saída a não ser buscar no mercado atletas que atuaram no Paulistão ou disputam a Série B. Foi como achamos Gum. Infelizmente só ocorrerá com um novo treinador.

A queda de Diniz é inexorável. Mas não será sem agonia. Estaremos afundados na tabela como em 2019, ano em que foi demitido pelo atual presidente. Mário se ressente do gesto, mas se não o tivesse feito a gente teria sido rebaixado ali. A pergunta é: quem vai chegar para barrar os medalhões? Afastar Luiz Alberto, Ruy Cabeção e Urrutia é uma coisa. Fazer isso com Felipe Melo, Marcelo, Renato Augusto, Douglas Costa, Ganso? O ano de 2009 trazia viva na memória uma trágica final de Libertadores. O ano de 2024 ainda nos pega lembrando da grande conquista de 2023. Isso faz diferença, embota os sentidos.

A conquista da América completa 6 meses nesta semana e a gente ainda sonha com ela. Não é fácil mexer com esse grupo nem com esse treinador. A gente se sente culpado, ingrato. O ano de 2024 será longo. A ficha da ilusão é sempre a última a cair.

Uma coisa, porém, precisa ficar clara: o objetivo de 2024 é evitar o rebaixamento. Libertadores e Copa do Brasil são luxos a que não podemos nos permitir. O foco é o Brasileiro. A realidade vai se impor de um jeito ou de outro. Houve tempo para escapar em 2009 e em 2019. É torcer para que não seja tarde em 2024.

2 Comments

  1. Excelente a sua análise. Eu mesmo fiquei empolgado com as contratações de Gabriel Pires(que vinha do virtual campeão brasileiro de 2023), Douglas(ex-seleção brasileira), Renato Augusto(craque do Corinthians) e Terans, mas por causa da imprensa especializada. Afinal de contas a torcida pode se iludir, quem não pode é a diretoria e os profissionais do clube que têm que zelar pela qualidade dos jogadores, aliados a condições físicas adequadas, o que inclui a idade, além do dinheiro que é escasso nas Laranjeiras.

  2. Parabens pelo artigo! Muito boa essa analise explicando a queda de rendimento do time. Ano passado as estrelas se alinharam de uma forma a nos dar esse titulo da libertadores, mesmo quando ja’ estavamos em decadencia. Naquela epoca tinhamos Cano, Andre e Arias tinindo. E tambem tinhamos o Nino. Com um esquema decadente e manjado, sem o Nino, e com esses 3 pilares do time indo mal, nao podia ser diferente. O Diniz tem tentado mudar as pecas, mas nao muda o esquema. Nem sei se mudando de treinador as coisas vao mudar, isso porque os jogadores serao os mesmos. Dificil….

    Saudacoes tricolores de Vancouver, Canada

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