Uma estória mixada (por Rogerio Skylab)

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Primeiro, você prende as pernas com um laço forte – isso é importante porque ela fica se debatendo. Em seguida, com uma das mãos sobre a cabeça, estica o pescoço dela. É importante que você tenha o joelho apoiado sobre o seu corpo, de maneira que a impeça de ficar batendo as asas. Feito isso, com a outra mão, você faz o talho – é bom que você tenha uma faca própria pra isso, de aço inoxidável. O corte no pescoço tem que ser feito com precisão: não adianta ficar dando vários cortes superficiais. Basta um único e incisivo. Imediatamente, o sangue vai espirrar. Você não pode esquecer a vasilha. À medida que o sangue vai jorrando, ela vai perdendo as forças: os olhos ficam embaçados como se estivesse dopada; o cacarejo vai ficando mais grave, mais lento; as pernas têm contração – são os espasmos diante da morte. Se for galinha de roça, consegue-se recolher até um litro de sangue. Se você acompanhar detalhadamente as etapas da operação, vai perceber o momento exato de sua morte. Nesse momento, cessam todos os movimentos. Recolhendo o sangue, passamos para a segunda etapa, não sem antes desvencilharmo-nos do resíduo do pescoço que insistia em ligar a cabeça ao corpo – a cabeça não terá serventia, segundo nossos usos e costumes.

Em seguida, mergulharemos o corpo da ave numa bacia de água fervente. Iremos depenar o frango com as próprias mãos. O calor da água ajuda nesse processo. Em poucos minutos, estará toda depenada e pronta para a terceira etapa: a retirada das vísceras.

Nesse momento, fazemos um outro corte na parte superior do corpo, de modo que, por esse orifício, possamos retirar as tripas, as vísceras (todas elas comestíveis) e quiçá alguma ova. É importante frisar o valor proteico das ovas. Em relação às vísceras, pode-se conseguir um excelente patê de fígado, moelas fritas com cebola e arroz, e, coraçãozinho como entrada.

A quarta e última etapa é o cozimento do frango. Se adotarmos o prato clássico, frango cozido, teremos que temperá-lo antes e deixá-lo algum tempo no molho. Mas, caso adotemos o Frango ao Molho Pardo, tentação das tentações, teremos que despedaçá-lo em suas devidas partes, a fim de que sejam cozidas junto ao sangue.

Neste momento, olhei de soslaio e pude reparar a expressão de esgar da menina. Permanecia muda e extremamente chocada com o que a mãe lhe dizia. Não era difícil adivinhar o seu complicado relacionamento com a cozinha. Toda a tradição, que sua mãe teimava em transmitir-lhe, estava a perigo.

Mas no meu lado direito, uma outra cena se desenvolvia. Estávamos todos no banco traseiro do ônibus, de modo que, espremido entre os dois casais, eu ouvia simultaneamente as duas conversas, enquanto uma bandeira do Fluminense passava, desfraldada, pela janela de um carro.

II

Ele pediu-me que sentasse na cadeira, que logo, logo, começaríamos. Sugeri a extração, mas ele rebateu de pronto a ideia. Segundo suas palavras, a extração é quando foram esgotadas todas as possibilidades de reabilitação: a extração é a morte.

A atendente prendeu-me, em torno ao pescoço, um guardanapo de papel, enquanto ele vedava seu próprio rosto com a máscara. Em seguida, acendeu a lâmpada e pediu-me que abrisse a boca. Com o espelhinho, localizou o dente, constatou o que pressentia e perguntou-me se queria anestesia. Tive a infeliz ideia de dizer não. Entre a agulha entrando na gengiva e apenas o motorzinho no dente, prefiro a segunda opção. A ideia de injeção sempre me foi insuportável. O cirurgião então ligou o motor e, como uma britadeira no asfalto, pôs-se a abrir paulatinamente a obturação do dente cariado. Resisti bravamente com as duas mãos apertadas nos braços da cadeira. À medida que a broca ia penetrando as partes mais profundas, uma dorzinha fina, afiada, aflorava. Dor de nervo. Dor que tortura porque não é extensiva: por exemplo, a dor de uma porrada nos córneos. Neste caso, toda a área, circunvizinha à porrada, sofre as consequências do trauma. No caso de uma obturação, não. A dor se aprofunda num determinado ponto, vai até os ossos. Dor de agulha que penetra fundo. Não se trata mais de uma superfície traumatizada com o choque.

A questão está quando a antiga obturação foi toda removida, restando ao dentista, debruçado sobre a boca aberta do paciente, perfurar a parte cariada (acho curiosa sua argumentação, porque obturar um dente em verdade é eliminá-lo – ao invés de fazê-lo de uma só vez, faz-se aos poucos). Quando então a broca penetra a região em que está localizada a cárie, as lágrimas brotam, as estrelas nascem, o suor inunda a palma das mãos. Estamos no clímax. Você geme baixinho, suportando como um herói. Só que, nesses momentos, ao invés do inimigo bater em retirada diante de tamanha resignação, ele persiste, ele penetra mais fundo em regiões abissais e não te resta outra opção senão gritar, quando não seguramos o braço do torturador.

Então se dá uma trégua. Pára-se tudo. Desliga-se o motor. O paciente respira. É que ele se valeu de um expediente que não constava na cláusula do contrato. Há um constrangimento no ar. O dentista fala: tá quase acabando.

Então, tudo recomeça. É a política da terra arrasada. A gengiva sangra, você fica grogue e a luz incide direto na tua cara. De repente, quando todas as tuas expectativas de pôr-se um fim àquele triste espetáculo, tinham desaparecido… eis que ele desliga o motor, te dá as costas e volta com uma pastinha na ponta da espátula. São os sinais do fim. Você levanta da cadeira humilhado, com um gosto amargo na boca. Sai trôpego pelas ruas, quase é atropelado. A bandeira do Fluminense passa desfraldada, e tudo continua como se nada tivesse acontecido.

III

Essas duas narrativas reverberavam ao mesmo tempo. Uma se imiscuía na outra. Em verdade, tentei decompô-las, eliminei os diálogos. Passo apenas uma transcrição do que foi cada uma. Porque simultâneo a elas, havia o ronco do motor, as freadas, a paisagem na janela e a bandeira do Fluminense. Eu vinha de uma longa experiência como DJ. Ali, entre os casais e suas respectivas narrativas, fui construindo uma outra, absolutamente inusitada. E ainda assim, advinda de ambas. Há muito que percebo isso: todas as minhas estórias são construídas de restos. Tudo vem se tornando para mim, uma questão de equalização, mixagem e masterização. De tal modo que, já nem sei mais o que é ou não real. Percebo que sou tudo que ouço. Essa estória mesmo, que vou lhes contar agora, nasceu tão espontaneamente que custo a crer que tenha sido apenas uma junção das duas que eu ouvia: “Passa a bandeira do Fluminense…”

FIM

Panorama Tricolor

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Imagem: rs

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