O Fluminense da América e seu sonho real (por Paulo-Roberto Andel)

ATO 1

Um jogo de futebol nunca é somente um jogo. Há muito envolvido nisso, e à medida que o tempo passa a imensidão aumenta.

Mais uma vez, o Fluminense impôs sua grandeza no Maracanã. O adversário não importa: Volta Redonda, Flamengo e agora o River Plate, um dos gigantes da América.

Havia gente pelos poros de concreto do velho novo estádio, que já tem dez anos. Gente de verdade, vinda de perto ou longe ou ainda muito longe. Gente, gente.

À tarde, o silêncio rubro-negro diante do sorteio na Copa do Brasil deu o tom do espaço que ocupamos atualmente. Ninguém gostou por lá, por motivos históricos justos.

Nós, mais velhos, olhamos os degraus e procuramos os tricolores que se foram, mas que nos pertencem para sempre. Procuramos velhas linhas que desapareceram, sons que já não escutamos mais, sonhamos com uma nuvem espessa de pó de arroz, espessa como as nuvens que vemos no céu. Tudo mudou, exceto as três cores e a vocação que o Fluminense tem para escrever dias históricos, mesmo quando eles parecem comuns.

Ah, Fluminense, velho de guerra, campeão desde o tempo da rua Guanabara, quando Marcos Carneiro de Mendonça era uma garantia. Fluminense de Zezé, Brant, Preguinho. Fluminense do injustiçado e maravilhoso Batatais. De Seu Pinheiro e mais um mundo de campeões desafiadores, ousados e definitivos.

Com seus 121 anos de histórias nas costas, o Fluminense é um pugilista duro de encarar, com seus braços nodosos, seu crânio raspado a navalha feito um Paulo Amaral – nosso grande treinador campeão de 1970. O River Plate sentiu o golpe. Aguentou o primeiro tempo, empatou na sorte, bateu muito e ensebou, mas depois do intervalo tomou um soco definitivo e nunca mais se levantou. Tal como no segundo tempo da decisão carioca, o Fluminense fez do time argentino paçoca amassada no prato com colher de sopa. E se não estivesse tão cansado, talvez tivesse feito mais.

Quando você tem dois jogadores monstruosos como Cano e Arias, entende que um jogo não é um jogo só, mas vários. Eles são ecos de Gil e Doval, de Robertinho e Cláudio Adão, ou de Assis e Washington. Quem sabe Pedro Amorim e Russo?

O time todo jogou tão bem que até um momento dramático ficou hilário: Felipe Melo, em grande noite, implorando a Diniz para que o tirasse de campo, já que tinha feito das suas e era candidato à expulsão. Em certos momentos, passes de Marcelo e Ganso são nocautes nas defesas adversárias. E você tem um garoto voando como Alexsander. E outro como JK. Imagine se o Luiz Henrique tivesse ficado.

O River Plate é um dos gigantes da América. Jogou quase 40 Libertadores e nunca havia sofrido cinco gols nela. O sonho do Fluminense é real, e diante de uma façanha dessas, não é exagero dizer que está classificado para a fase final, nem que é sério candidato a conquistar o único título que lhe falta. Ainda há muito a ser feito, mas a injustiça de 2008 parece hoje, só por hoje, estar com os dias contados.

O Fluminense, que desafia definições, que ridiculariza o boicote de manchetes, que ganha e joga bola a ponto de rememorar seu melhor passado. Foi assim no fim dos anos 1910 e 1930, nas gloriosas décadas de 1970 e 1980, em momentos belos deste século XXI e especialmente em atuações avassaladoras que vêm do ano passado.

São muitos Fluminense num só, muitas histórias sobre os ombros de onze camisas que correm, suam e encantam. Não temos certeza de nada, nem do que vem pela frente, mas todos os corações tricolores, dos mais abastados aos mais humildes, batem forte em busca de um grande sonho que se torne a melhor realidade do mundo – aquela, onde todos os torcedores vivos ou mortos se abraçam na arquibancada e celebram o que têm de melhor.

ATO 2

Existe tanta, mas tanta coisa em torno de um jogo de futebol que é impossível dar conta disso.

Um jogo nunca é um jogo só. Ele traz de volta lembranças, ideias e muitas outras coisas.

Os 60 mil tricolores no Maracanã (com ou sem seis mil cortesias) viveram uma noite de sonho. Fúria e folia rumo ao mágico. O River Plate é uma das maiores equipes da história do football.

Quanta gente estava ali? Quantos estão gravemente doentes? Quantos nunca mais vão voltar? Quantos estão ameaçados pela pobreza, desemprego ou despejo? Quantos olham tudo e sorriem mas choram muito por dentro? Por uma hora e meia, todas as tragédias pessoais ficam de lado frente a uma bolinha que vai e vem na grama do Maracanã. Por uma hora e meia a felicidade é possível.

Futebol é mais ou menos o seguinte: você encontra alguém que admira o seu trabalho – o querido Alexandre, com seu amigo de infância -, conversa animadamente, erra a estação do metrô e salta antes da hora, então caminha pela Carioca deserta enquanto um rato passa correndo pela Rio Branco. Algumas pessoas sofridas em busca do lixo. Anda até a Cinelândia escura e se salva na Araújo Porto Alegre com um táxi – e o motorista, rubro-negro, te parabeniza pela goleada que ele não viu mas tem certeza de que foi impressionante.

Ainda tem mais: abraçar amigos no Maracanã é bom demais. Falar com eles no WhatsApp. Imaginem, meu amigo Raul comemorou o aniversário hoje no Maracanã. É inesquecível.

Nem tudo são flores. Por exemplo, os tricolores de Magé são muito desrespeitados na volta do estádio pela precariedade do transporte público. Falarei disso em breve. A Carine me dará aulas sérias a respeito.

Mas, apesar dos pesares, essa noite foi gloriosa. O Fluminense foi supremo no segundo tempo. Cano e Arias foram dois monstros que João Saldanha aplaudiria de pé, e por isso o Flu impôs um massacre ao River Plate. E por isso mesmo todos trocamos muitos abraços – repare que o abraço na hora de um gol é sempre sincero.

Foi bom demais estar com o Edgard e o Diniz, com o Júnior, o Gustavão e o Beto, a turma de Friburgo – encarando a estrada neste momento. Encontrar com o Cacá e sua jovem filha na festa do acesso ao metrô. O WhatsApp cheio de mensagens do CH, Vinicius, Jocemar, Robertinho, tanta gente.

Agora são uma e meia da manhã. Comi oito torradas com Polenguinho e bebi Fanta Maracujá. Não consegui falar direito com a Marina. Estou com dores nas costas e nos joelhos. Amanhã, ou daqui a pouco, vou acordar com muito medo de uma bomba explodir na minha cabeça. Coisa dos anos difíceis, do desprezo e da falta de consideração, mas só por hoje o sono será bom. Eu ainda estou esperando os gols no Jornal da Globo.

O Fluminense venceu. Por alguns instantes, minha vida melhora e me sinto livre, sem pena a cumprir, sem humilhações a passar, sem tristeza. O sono será bom, porque o Fluminense foi Fluminense demais.

ATO 3

Quem é Renato Maurício Prado para opinar sobre Nelson Rodrigues?