Stanislaw Ponte Preta (por GET)

Um dos maiores jornalistas brasileiros, Sérgio Pôrto foi um torcedor apaixonado do Fluminense. Mais do que isso: compositor, cronista, humorista. A ele devemos a redescoberta de Cartola nos anos 1960, quando o grande compositor passeava uma fase de invisibilidade artística. Sérgio também foi goleiro do lendário time de praia Lá Vai Bola, onde anos mais tarde jogaria um grande goleiro tricolor: Renato, titular da Máquina em 1976.

Este perfil escrito pelo jornalista Sérgio Augusto foi publicado originariamente no Portal da Crônica Brasileira.

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“Que falta faz o Sérgio Porto!”

Quantas vezes você já ouviu alguém dizer isso? Ou isto: “Ah, se o Stanislaw fosse vivo…”

Vivo entre nós, infelizmente, só o besteirol que sempre assolou o país. Daí a falta que ele, Sérgio Porto, faz. E Stanislaw (Ponte Preta) mais ainda, pois era Lalau quem cuidava do Febeapá, acrônimo ainda hoje invocado até por aqueles que o conhecem apenas de referência e mesmo ignoram o nome de quem o inventou e agitou nas páginas do jornal Última Hora.

Resumindo: sem o Sérgio não existiria o Stanislaw. Pois quando o primeiro morreu (em 30 de setembro de 1968), o segundo não teve outro jeito senão acompanhá-lo aos campos elíseos. Tal é a sina dos heterônimos e dos alter-egos. E também – mas nem sempre – dos personagens entregues à orfandade. Ninguém, contudo, ousou tocar adiante a saga de Tia Zulmira, primo Altamirando, Rosamundo e toda a parentela suburbana inventada pelo humorista mais popular do país nas décadas de 50 e 60 do século passado.

Humorista é uma qualificação genérica. Sérgio foi cronista, crítico de cinema, jazz e música popular, redator de programas de humor radiofônicos e televisivos, dialoguista de chanchada, comediógrafo, comentarista esportivo, animador de shows em boates e na TV, âncora de telejornal — e como em tudo punha o seu carioquíssimo olhar de moleque, humorista sintetiza bem o currículo.

Nem ao arriscar-se como compositor ele deixou de fazer graça. Quem nunca ouviu o paródico “Samba do crioulo doido”, gozação na vocação dos sambas-enredos para falsear fatos e feitos de nossa história, em clave ufanista, ao menos sabe o que a expressão significa. Da mesma forma delirante como Mendes Fradique (outro heterônimo, no caso do médico capixaba José Madeira de Freitas) fizera em sua História do Brasil pelo método confuso, Sérgio reduziu a Inconfidência Mineira e seus protagonistas a uma barafunda surrealista.

Descontraído, irreverente, ocasionalmente lírico (ou melhor, “lírico-espinafrativo”) e sem cerimônia com a sintaxe ou a gramática, era uma usina de neologismos e definições impagáveis. Escrevia em dialeto carioca, como se copidescado por um malandro — meio pernóstico, é verdade, pois volta e meia surpreendia o leitor com palavras engravatadas (convescote, tugúrio, macróbio, intimorato), de pura molecagem, é claro, tirando um sarro da retórica afetada de certos parlamentares e seus êmulos na locução esportiva.

“O sol entrava em suas frases por todos os lados”, deslumbrou-se Barbosa Lima Sobrinho.  Para Luis Fernando Verissimo, Sérgio não deixou um escasso herdeiro, deixou apenas um rombo. “Ser carioca é fácil”, escreveu Verissimo, “difícil é recriar o carioca como ele fazia”.

Certas gírias que inventou ou difundiu (“cocoroca”, por exemplo, há muito dicionarizada) saíram de moda, mas achados como “bossa nova” e “teatro rebolado” nasceram sem prazo de validade. “Redentora”, o debochado apelido por ele dado ao golpe militar de 1964, não resistiu ao tempo, mas foi ótimo enquanto durou (o apelido, esclareça-se). Por certo não foi ele quem primeiro apelidou de “certinha” uma mulher fisicamente bem proporcionada, mas como dissociar essa feliz antonomásia das pin-ups que emolduravam sua coluna, identificadas como “Certinhas do Lalau”?

Suas imagens comparativas (“mais por fora que umbigo de vedete”, “mais feio que mudança de pobre”, “mais por baixo que calcinha de náilon”, “mais por fora do que cego em tiroteio”, “mais duro que nádega de estátua”, “mais inútil do que um vice-presidente”, “mais monótono do que itinerário de elevador”) não só caíram na boca do povo como nas ruas se metamorfosearam e multiplicaram.

Frasista afiado, legou às nossas conversas um farto florilégio de aforismos, epigramas e apotegmas – “Ou restaure-se a moralidade ou locupletemo-nos todos”; “Em rio de piranha jacaré nada de costas”; “Imbecil não tem tédio”; “Antes só do que muito acompanhado”; “O sol nasce para todos, a sombra pra quem é mais esperto”.

Alto (1,85m), corpulento, praticou pelo menos cinco modalidades esportivas. Foi goleiro do clube Lá Vai Bola, nas peladas de areia em Copacabana, atuando ao lado de João Saldanha, do futuro ídolo botafoguense Heleno de Freitas e do vizinho de infância Sandro Moreira, filho de Álvaro Moreira; nadou, jogou basquete e vôlei no Fluminense; remou pelo Clube Guanabara.

Nascido e criado em Copacabana, morou sempre na mesma rua (Leopoldo Miguez), primeiro numa casa, construída pelo avô, Armindo Rangel, e mais tarde retratada em livro (A casa demolida), depois no prédio erguido em seu lugar. Ao bairro permaneceu fiel até o fim da vida. Convidado pelo presidente Jânio Quadros para ser adido cultural na Iugoslávia, saiu-se com esta: “Muito obrigado, Presidente, mas daqui não saio nem para Ipanema”.

Até Ipanema saía sim, mas só por algumas horas, para beber e conversar com Millôr, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e outros amigos de boemia. Fugindo à regra de sua geração, não se formou em Direito. Aliás, não se formou em nada. Cursou até o terceiro ano de arquitetura, trancou matrícula e prestou concurso para o Banco do Brasil, o mais seguro emprego do país na época. Bancário durante 22 anos, jogou a segurança para o alto (seu colega Jaguar faria o mesmo) e, já enrabichado pelo jornalismo, arrumou emprego na revista Sombra, editada por seu tio e mentor intelectual, o crítico e historiador musical Lúcio Rangel.

Ainda pelas mãos do tio ganhou espaço no Diário Carioca, onde, ao longo de três anos (1950-53), publicou três centenas de colunas sobre aquelas trivialidades tão caras aos cronistas (praia, saudade, Ano Novo, tipos populares etc.) e comentários críticos sobre discos, músicas, rádio e boates. A partir daí, em sucessivas passagens pelo semanário alternativo Comício, pelos jornais Tribuna da Imprensa, Última Hora, Diário da Noite, O Jornal, e as revistas Manchete, O Cruzeiro, Mundo Ilustrado e Fatos & Fotos, tornou-se a grife mais presente nas bancas de jornais.

Stanislaw Ponte Preta, inspirado no Serafim Ponte Grande de Oswald de Andrade, surgiu para promover uma catarse diária no leitorado de Última Hora. Livre de qualquer parti pris ideológico, defensor intransigente da cultura popular (redescobriu Cartola e chegou a participar do programa televisivo de perguntas e respostas O céu é o limite respondendo sobre samba), dizia-se um mulherólogo, inimigo visceral dos hipócritas, racistas e puxa-sacos, dos burros metidos a sabido, dos intelectuais metidos a besta, dos políticos ignorantes e fisiológicos — e, após o golpe de 1964, dos militares de qualquer patente.

Municiado pela Pretapress, fictícia agência noticiosa que o enriquecia de histórias e personagens recolhidos em recortes de jornais enviados pelos leitores, “seus olheiros especializados”, e tirados do serviço de clipping do Lux Jornal, foi montando o Febeapá, o mais variado e divertido painel da debilidade moral e mental que do Brasil tomou conta depois da “redentora”.

Sua capacidade sobre-humana para trabalhar (15 horas por dia, no mínimo) rendeu-lhe dois infartos. O segundo, previsto pelo cardiologista e pelos búzios da maior ialorixá da Bahia, foi fatal. Tinha só 45 anos. “Melhor viver pouco mas tudinho”, gostava de dizer, para justificar suas exorbitâncias. Tudinho Lalau viveu.