Santo Assis (por João Leonardo Medeiros)

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Domingo de férias na praia de Boa Viagem em Recife, brincando com meu filho, ao lado de minha esposa. Depois de um ano turbulento, curto enfim uma manhã tranquila. Peguei o celular para tirar uma foto do filhote todo sujo de areia e percebi que tinha recebido uma mensagem. O remetente: meu querido amigo Rodrigo, o nosso Rods. O texto: Assis morreu.

Foi outro amigo, Acácio, que avisou que Washington tinha morrido, também por mensagem. No caso do Negão, todos sabiam da doença. Mas ninguém sabia da enfermidade que consumia Assis. Ato contínuo, respondi com a pergunta: morreu de quê? Pergunta idiota, dispensável, porque a resposta era óbvia (e não foi a que recebi).

Explico, embora seja simples. Nos campos, todos diziam que Washington nada seria sem Assis. É mentira, claro, como a torcida do Santa Cruz, por exemplo, pode testemunhar, embora seja verdade que todas as metáforas do par perfeito (arroz-feijão, côncavo-convexo etc.) sejam singelas para descrever a sincronia dos crioulões. Verdade também é que o centro de gravidade do casal 20 era o crioulo cabeludo, black power, belo, elegante, inteligente, calmo, bom – santo enfim. Por isso todos achavam (erroneamente) que Washington era mera sombra de Assis.

Infelizmente, nossa educação não torna a maioria minimamente versada na dialética de Heráclito, de Hegel e, principalmente, de Marx. A maioria não é familiarizada com a percepção de que determinadas formas de existência definem-se pela relação com outra forma de existência, na relação com a outra, no processo que depende da interação dos dois contrários: professor-aluno, pai-filho, general-soldado.

Pois bem: Washington não foi o centroavante que jogou com Assis. Não foi apenas o segundo do Casal 20. Washington foi o par dialético de Assis. Um definia o outro, um dependia do outro, um era o outro no par que constituíam. Como diria Bono Vox, they were one, but not the same. Quando Washington morreu, levando consigo um pouco do Fluminense, Assis despediu-se da Terra, levando outro tanto. Desculpe-me a família, os amigos, perdoem-me os médicos que atestaram o óbito. Mas é simples assim: Assis morreu por falta de Washington, pois o que o futebol uniu nem a morte poderia separar.

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Quando morreu Washington, fiz um depoimento pessoal, recordando sua importância para a formação do que acho que sou, principalmente no que concerne à luta diária para recusar o preconceito racial ou de outra forma qualquer. Pude conter a emoção e testemunhar o papel decisivo do ídolo de infância na formação do caráter do adulto.

Não posso, infelizmente, fazer o mesmo com Assis. Se Washington, para mim, foi um imenso ídolo, Assis foi muito mais do que isso. Assis foi o santo de um ateu, eu. Perdi a fé cedo na vida. Respeito o credo alheio, mas confesso que não compartilho do sentimento. Entendo que, por exemplo, santos são mulheres e homens tão virtuosos que merecem um qualificativo divino. Assis é exatamente isso para mim: um homem tão cheio de predicados positivos que, por efeito de síntese, é melhor agregá-los todos na palavra santo.

São tantos os testemunhos (meus e de outros) da santidade de Assis que não poderia escolher apenas um momento a título de ilustração ou comprovação. Seria uma covardia com minha memória. Seria uma covardia com Assis. Que me perdoe o ídolo, mas não poderia falar de ti, de minha relação contigo, de meu encantamento por seu futebol, por sua conduta, por sua simplicidade. Também não poderia agradecer, porque nenhum agradecimento seria suficiente pelo que fizestes por mim e pela minha geração. O que resta, portanto, é o adeus, sentido, distante, mas sincero àquele que tinha nome de santo, sobrenome de santo e vida de santo. Descanse em paz, Santo Assis.

benedito

Panorama Tricolor

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