Saldanha 100 (por Paulo-Roberto Andel)

Em meio a um Brasil de cabeça para baixo em quase todos os sentidos, João Saldanha chega aos 100 anos. Pouco importa que tenha morrido em Roma, em plena Copa do Mundo de 1990, dado que sua importância ainda é vital para jornalistas esportivos e cronistas de futebol, aos menos para os que pretendem um mínimo de respeito profissional em suas carreiras.

Quando o futebol era futebol, o Maracanã era tão lotado e ligado em rádio que os sinais das emissoras ecoavam fortemente pelas arquibancadas, que tremiam. Na hora do intervalo, dois milhões de cariocas paravam para ouvi-lo na latinha, e ali se desenhava a verdade oficial das partidas.

Para a crônica de futebol, não há dúvidas: João Saldanha foi o nosso Miles Davis nas redações esportivas. Abriu trilhas, simplificou o processo, limpou os textos. Escrevia como falava, numa mistura de simplicidade e sofisticação quase impossível de imitar. Ele foi um dos revolucionários da linguagem outrora empolada dos jornais; com isso, ganhou milhões de fãs. Em breve, será relançado seu livro clássico “Os subterrâneos do futebol”, divisor de águas na literatura do esporte, além de uma coletânea de suas cem melhores crônicas comentadas. Material imperdível para os fãs e pesquisadores.

Em meu caso particular, não posso deixar de me emocionar: ter acompanhado o trabalho de Saldanha por 12 anos foi decisivo que para que eu me tornasse um escritor de futebol no futuro. Quando comecei a ler nosso ídolo Nelson Rodrigues, ele já estava doente e eu o acompanhei por menos de dois anos. Ao lado de Achilles Chirol, Saldanha me deu a mão e, de pequeno leitor, passei a ser um adolescente apaixonado pelo esporte. Nelson, sem dúvidas, foi o maior de todos os cronistas esportivos brasileiros, mas é certo que Saldanha muitas vezes cruzou a linha de chegada cabeça com cabeça com o mestre.

E o PANORAMA ganhou um tremendo presente: quis o destino que, muitos anos depois daqueles incríveis 1980, nossa amiga Thereza Bulhões chegasse à esta casa e se tornasse nossa cronista regular. Thereza estava casada com Saldanha quando aconteceu a inesquecível decisão de 1971, e sua história sobre o término da partida é um capitulo de boas risadas. Ela também escreveu um belo livro sobre Saldanha, contado pela ótica de suas companheiras de vida.

Já disse diversas vezes que, se pudesse escolher um único torcedor rival para transformá-lo em tricolor, seria João Saldanha. Meu professor à distância, um velho camarada idem. Pensando bem, era bem melhor tê-lo como um amigo rival do outro lado da arquibancada do que, ocasionalmente, um ou outro ao nosso lado mesmo.

Saldanha vive.

Panorama Tricolor

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Imagem: Curvelo