Paleontologia (por Rogerio Skylab)

SKYLAB DESENHO AZUL

Gosto do interior, interior mesmo. Vamos encontrar nesses locais desprovidos de luz, água e telefone, nesses grotões sem nome, a Mulher-Gorila. A higienização, que está ligada à Medicina Social, impetrou novos hábitos e controles. Isso data do século XIX, e Machado de Assis pode servir de testemunho. O Alienista é um conto exemplar nesse sentido. Vamos importando as novas ideias a torto e a direito porque elas fazem parte da civilização. Só que, fora do lugar de origem, podem parir monstros.

Eu gosto dos grotões. O cheiro de esgoto, a fedentina, a nheca. Favela é foda.

Eu sei que vão falar – ah, esse cara curte escatologia. Não é isso. Escatologia é palavra vazia, noção vazia.

Josiane trabalhava no Banco do Brasil, era minha colega. Uma menina comum, delicada, feminina. Um dia, levantou os braços e tava de camiseta (tenho pra mim que usava camiseta de propósito). Porra, apareceu um tufo negro debaixo dos braços, que paralisou meus sentidos. O que era aquilo!!! Josiane tinha pelo nas axilas. Pelos negros, abundantes. Foi uma iluminação. Josiane não tinha mais nada – o que ela pensava, o que ela dizia, não era nada, nada, nada. Josiane era o tufo. O tufo dizia por ela.

Houve um tempo que as meninas passavam água oxigenada no pelo dos braços e das pernas. É nisso que me ligo. As contas de luz, água, telefone… Que se fodam! Os pelos douradinhos eram moda. Elas voltavam da praia com os pelinhos dourados e eu ficava olhando aquilo, não pensando mais em nada. A qual ciência da história me reter diante daqueles ursinhos dourados? Elas deixavam crescer para dourar. Antes assim. E tinha umas bem peludinhas – davam trégua e os pelinhos vinham, como vinham.

Hoje é uma tristeza. Você olha pra direita, pra esquerda e é só mulher de plástico.

Quando morava em Salvador, na praia da Barra, vi uma mulher de verdade: os pelos cresciam pela virilha, pelo grosso, pelo bom. O biquíni não escondia porque eles cresciam pros lados. Essas imagens me enterneciam, são fragmentos da Mulher-Gorila.

Quando criança, a Lúcia, bem mais velha do que eu, era amiga da minha irmã. Motivo de escárnio, tinha um cecê inimaginável. A explicação científica era que tinha problemas de glândula. Ora, bolas!!! Bastava chegar perto e a gente sentia. Tinha um gambá debaixo dos braços. É assim que a gente vai reconstituindo a Mulher-Gorila.

Mas os seus traços estão à nossa frente, basta atenção. Um dia peguei uma piriguete e mandei ver. Tudo normal, mãe de dois filhos, bem informada, casamento estável, do lar… Não fosse a catinga. O que era aquilo? Não devia tomar banho uns dois dias. Fedia que dava gosto. Não era comum aquilo – enfiava o nariz na nuca e aspirava firme. Chegava a tremer. Você viu “O Perfumista”?

Mau hálito é outro departamento. Não que seja ruim, o problema é o mau hálito comum aos que fumam. Conheço de cor e salteado. E o pior de tudo: camufla o mau hálito verdadeiro, aquele que vem das entranhas, que você sente no beijo e aguenta firme. Mau hálito do estômago, o mais profundo. Parecido com o do cu, pós-peido. Fragmentos de uma Mulher-Gorila.

A gente reconstitui ao nosso modo. Porque a Mulher-Gorila ficou esquecida, foi recalcada. A gente faz a exumação e isso me lembra IML.

Um dia fiquei atacado e fui procurar minha irmã no necrotério. O que a gente não faz pela Mulher-Gorila! Descrevi os seus traços com a precisão de um retrato-falado. O secretário me indicou seis possibilidades. Nada menos do que seis. Todas mortas pelo tráfico.

Mas o que está em questão é a Mulher-Gorila. É tudo por ela. E enquanto o sono não vem, a gente vai folheando umas revistas de travesti pelada. Tem uma (me nego a tratar travesti no masculino) que tem até ancas. Pode? Nome: Micheli. Ah, os nomes de travesti! As primeiras imagens fazem parte daquela mise-èn-cene: juju, balangandan. Tinha uma até com a camisa do Fluminense. Mas o ensaio fotográfico continua e a gente faz de conta que acredita. Até chegar a última foto, a gente parece aquela criança que foi com o Seu Abelardo até o quarto onde ele dorme, acreditando que ele ia mesmo dar umas balinhas pra gente chupar. Quando eu chego então na última foto, aí sim eu vejo a Mulher-Gorila, inteira na minha frente.

Panorama Tricolor

@PanoramaTri @rogerioskylab

Imagem: rs/pra

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