O mestre Telê Santana lecionava que a melhor defesa era o ataque. Seu pensamento sempre foi usar a posse da bola não somente para atacar, mas também para se defender. Ou seja, se sua equipe controlasse a partida, ela diminuía o número de ataques do adversário e o cansava de correr atrás da bola. Telê tinha como objetivo o controle qualificado do jogo e, por isso, a posse com técnica e elegância, sempre foi a nota dos seus trabalhos.
Muricy Ramalho iniciou sua carreira de treinador trabalhando com Telê no São Paulo. Mas seu bordão dizia que a bola punia os times que desperdiçavam suas chances de gol. Muricy partia da segurança defensiva para, posteriormente, buscar o ataque. Foi tricampeão brasileiro jogando com três zagueiros e muita bola aérea. Quem está certo? O importante é vencer ou jogar bonito? Nós, amantes do futebol, vamos refletir sobre isso a cada jogo, a cada gol. Porém, precisamos entender que o jogo mudou.
A questão é que o futebol foi bastante transformado pela questão econômica e também pela evolução da ciência aplicada ao esporte. A formação dos atletas mudou, a condição física mudou e o espaço do tapete verde é o mesmo. Tais condições não favorecem o brilho, mas sim a competição. Cada vez mais veremos guerras de transições velozes que vão, ao longo do tempo, diminuir a distância da questão de ser ofensivo ou retranqueiro. A tendência é termos, em breve, o futebol “trocação” como regra.
Assistindo Barcelona e Bayern pela Liga dos Campeões, ficou nítida a agressividade recíproca. Muita compactação e transições velozes marcaram o duelo. O Barça, caracterizado pela posse calma e harmônica, atualmente pratica um controle mais célere. Não há tempo para pensar, as marcações são velozes no bote. O talento não morreu, nem tão pouco as grandes atuações, mas o futebol mudou. É intensidade para retomar a bola e intensidade para atacar.
O Barcelona tentou com Xavi dar continuidade ao jogo de posse tão marcante na história do clube. Não deu certo e levaram um treinador alemão que gosta de velocidade. Foi jogando com rapidez e objetividade que os catalães fizeram 4 a 1 em um adversário historicamente complicado no jogo acima citado. Para proporcionar esse estilo agressivo, o Barcelona conta com quatro preparadores físicos renomados. Ou seja, tem que ter agressividade, velocidade e resistência para guerrear.
A equipe montada por Hansi Flick passou o carro no pragmatismo vencedor do time alemão. Mas fez isso ancorada na intensidade, não no brilho mágico da técnica. Como dito, os espetáculos estão raros. Não há tempo para o show, o jogo está cada vez mais pegado, veloz, corrido. O futebol virou uma espécie de basquete que vai andando pelo gramado, tudo muito próximo, tudo muito rápido. Cada vez mais será difícil ver o toque refinado, as tabelas que marcaram gerações de apaixonados pelo esporte.
Outro exemplo é o Real sem face de Ancelotti. Seu time faz e toma muitos gols. Os jogos do Madrid estão sendo intensos e recheados com gols em velocidade. O italiano, que sempre foi conhecido por montar times seguros na defesa, algo muito típico no futebol de seu país, se adaptou ao novo futebol e tem investido todas as suas fichas na velocidade. Tanto que dobrou a aposta na intensidade e na juventude ao trazer Mbappé e Endrick para um time que já contava com Rodrygo e Vini Júnior.
Fica complicado afirmar se o Real Madrid é ofensivo ou defensivo. O time luta nas duas fases, como um autêntico boxeador. É trocação e a busca incessante por espaço para disparar suas flechas. O time do italiano conquistou títulos com placares dilatados e inesperados. Como exemplo temos a vitória épica e eletrizante conta o City de Guardiola. O 4 a 3 histórico na Champions foi uma atuação alla Rock Balboa. Não importa para o Real quem é o adversário e a sua forma de jogar, mas sim lutar sempre.
Foi jogando assim que tomou dois do Borussia no primeiro tempo no jogo dessa semana pela Champions. Na volta do intervalo, passou o carro no adversário e marcou cinco gols, usando e abusando do espaço e da velocidade de suas flechas. O time toma muitos gols, porém consegue fazer mais que os adversários na trocação incessante. Por isso Benzema deixou de ser interessante e não vemos mais tanta técnica no meio, mas sim força para sustentar o time e deixar o ataque voar.
Também podemos citar o Botafogo e sua goleada histórica diante do Penarol pela Libertadores. Depois de um primeiro tempo ancorado na catimba e na conivência do árbitro com a postura do time uruguaio, voltou do intervalo e impôs seu ritmo costumeiro. Com muita velocidade e intensidade, marcou cinco gols e praticamente selou sua participação na final da competição. Foi tanta velocidade que os uruguaios ficaram literalmente tontos. Por pouco não tomaram uma goleada ainda mais histórica.
Percebam como Milito mudou a forma de atuar do Galo. A equipe se reinventou ao abandonar a obsessão pelo controle e buscar um pouco mais de pragmatismo para lutar. Foi assim que venceu São Paulo, Fluminense, Vasco e goleou o River nas copas. Ao invés de apostar todas as suas fichas na posse e expor a equipe com linhas altas, o argentino equacionou a proporção defesa e ataque e deu mais tranquilidade para seus talentos decidirem.
O espaço ficou curto por dois fatores. O primeiro é a condição física dos jogadores. Para jogar futebol profissional em alto nível, atualmente, tem que ser atleta. Pode ter o talento do Pelé que, se não dedicar a vida pelo esporte, não vai prosperar. A outra questão é a evolução tática que exige setores compactados. Ou seja, o jogo é jogado em um espaço diminuto do campo. O bloco compacto vai se movendo pelo gramado em um quadrado que possui mais ou menos 25% do espaço total.
Tal reflexão surgiu nesta madrugada, momento em que me questionei se o Fluminense de Mano ainda pode conseguir jogar bem nessa temporada. E foi pensando sobre isso que cheguei à conclusão que a minha expectativa é errônea, algo comum no torcedor brasileiro. Ficamos travados na ideia de jogo bonito, vistoso, o famoso “show de bola”. Os europeus abandonaram essa perspectiva há muito tempo, o que explica muito o atraso do nosso futebol em relação ao deles, mesmo dez anos após o 7 a 1.
O Tricolor não tem jogado bem, mas está vencendo o necessário para se livrar do rebaixamento. E a torcida tem que entender que esse time não vai jogar bem, não há espaço para brilho nessa temporada tão conturbada. A mudança de filosofia foi brusca, afinal os pensamentos de Diniz e Mano são antagônicos. O primeiro vive do risco com goleiro jogando com os pés, posse associativa e linhas altas. O segundo repousa na segurança defensiva para depois buscar o gol.
Essa troca brusca de pneu com o carro andando, outro problema típico do nosso futebol, não vai permitir um jogo coletivo brilhante ao Fluminense. Então é ajustar a defesa e apostar as fichas no brilho individual dos atletas, o que vem acontecendo. O trabalho de Diniz não tinha protagonista. O valor estava no coletivo, na solidariedade com relação ao propósito tático, algo que ele repete muito. O trabalho de Mano tem vários protagonistas, afinal o coletivo é para sustentar o time em base sólida para depois tentar o gol.
Aliás, sobre Fernando Diniz, este terá que adaptar sua ideologia de dominação e posse e colocar boas pitadas de competitividade em suas equipes. Junto com a diretoria do Fluminense, o treinador dobrou a aposta em jogadores velhos e se manteve rígido ao se negar em acelerar o jogo do time, mesmo que em alguns momentos para bagunçar a cabeça do adversário. Seu Cruzeiro não consegue ganhar e a chance de demissão é provável. Se Guardiola acelerou o carro, não vai ser Diniz que irá mudar o futebol.
Precisamos nos acostumar com a racionalidade do jogo moderno sem perder a emoção. Cada vez mais a técnica será como gotas da chuva rala. Hoje temos Vini Júnior, Martinelli, Raphinha, Savinho e Rodrygo arrebentando no futebol europeu. No Brasil, temos Luiz Henrique e Estevão voando. Então qual será o motivo da seleção jogar mal? Será que estamos querendo ver a técnica brilhar antes de competir? Chegou a hora de esquecer show e protagonismo. A expectativa lúdica vem atrapalhando a montagem de um time que precisa usar a velocidade e a intensidade que brilha pelo mundo.
A geração atual é pura velocidade e intensidade. Esses atletas são amantes das transições velozes. Nasceram nesse novo futebol, são frutos do momento atual. Pode ser que uma pitada de técnica, algo que Ganso exala com simplicidade, seja a gota de chuva rala que o meio campo da seleção precisa para florescer o ataque potente que possui. Mas não espere o que vimos em 1970 e 82. O samba nos ensina que o show tem que continuar e, no futebol moderno, a marcha está ancorada na competição física. A técnica que se vire para brilhar.