O gol de barriga é só um detalhe de uma história de arrepiar (por Marcelo Savioli)

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Aquele ano de 1995 era de uma grave crise financeira pessoal. Não era muito diferente com o Fluminense. De modo que pouco se esperava do desempenho tricolor no campeonato e menos ainda da minha presença no Maracanã, tanto que só estive presente em dois jogos, o primeiro deles a estreia de Romário, no Fla-Flu que terminou 0 a 0, apesar do Fluminense bem superior ao adversário.

Depois do 0 a 0 veio o 3 a 1 e o 4 a 3, originando até uma musiquinha da torcida que descreve de forma incomparável o que aconteceu naquele campeonato, o do Centenário dos Café com Leite.

Todos sabem como terminou aquele ano, com o Botafogo campeão, depois do Fluminense ter sido eliminado na semifinal, enquanto o Flamengo era salvo do rebaixamento na bacia das almas no Campeonato Brasileiro. Prova cabal de que o decantado time dos sonhos rubro-negro não passava de mais uma galhofa.

O fato inegável é que o ano de 1995 foi um traço fora da curva do período mais negro da história do Fluminense. Cheguei ao Maracanã em 1975 assistindo à Máquina de Francisco Horta. Só de arquibancada, já acumulava, dez anos depois, seis Estaduais e um Brasileiro.

Pois nos dez anos que se seguiram viramos o time do quase dentro de campo. Foram duas semifinais de Brasileiro e três finais de Estadual perdidas. Em 95, acumularíamos a terceira eliminação em semifinais de Brasileiros.

Eram dez anos sem títulos oficiais, embora sempre montássemos equipes competitivas, enquanto o clube, do ponto de vista financeiro, se afundava em péssimas gestões, que culminaram em um time que chegaria a uma final com meses e mais meses de salários atrasados.

Um time em quem ninguém acreditava, que acabou tendo em Renato Gaúcho, jogador tido como ultrapassado e acabado para o futebol, seu grande personagem e herói. Um time que disputou um campeonato para lá de confuso, feito para preencher calendário.

Depois de uma longa jornada (o 3 a 1 já estava na conta), com dois turnos e uma penca de jogos inúteis, iniciava-se o campeonato de verdade: um octogonal, em dois turnos, com os melhores classificados naquelas fases classificatórias intermináveis.

O Flamengo começava com três pontos de vantagem, graças ao regulamento. Se me lembro bem, o Botafogo tinha dois, o Vasco um e o Fluminense nenhum. Bom, ninguém ligava para o Fluminense, exceto pelos passeios que andava dando na grande atração do campeonato: os Café com Leite.

Seguindo sua sina de patinho feio, o Fluminense iniciou o octogonal decisivo, que era disputado em pontos corridos, com um empate diante do América, em que fomos assaltados pela arbitragem, e uma derrota para o Botafogo. Com isso, foi um tal de todo mundo disparar em nossa frente e só não deram o Fluminense como morto para não serem redundantes.

O Fluminense entrou em campo contra o Vasco na terceira rodada já não mais como coadjuvante, mas como figurante da epopeia rubro-negra, que emolduraria o centenário com os louros do título estadual.

O Fluminense fez 1 a 0 no Vasco, que virou a partida. Pouquíssimos tricolores se dignavam ainda a estar no Maracanã, então ainda maior do mundo. Os vascaínos, por sua vez, não demonstravam entusiasmo muito maior. Enquanto isso, uma alma desatinada não descolava o ouvido do rádio, acompanhando cada lance como se fosse uma decisão.

Para mim, particularmente, era uma decisão de campeonato, porque eu tinha a firme convicção de que o Fluminense tinha o melhor time do Rio de Janeiro, embora o Botafogo não concordasse muito comigo e até me deixasse em dúvida. O fato é que eu acreditava naquele meio formado por Márcio Costa, Djair, Aílton e Rogerinho, enquanto Renato ganhava cada vez mais minha confiança.

E então vieram os dois gols do Leonardo e a virada épica tricolor, “o verdadeiro jogo do título”, era o que eu dizia aos amigos flamenguistas, que rolavam no chão de tanto rir. Afinal de contas, o senso comum é o senso das coisas.

E deu-se que o Fluminense, que era o melhor time do Rio – o Fluminense, e não o Flamengo ou o Botafogo – disparou a ganhar. Depois de termos estado a 8 pontos de distância do líder, começamos a chegar, chegar, chegar e aparecer no retrovisor. Sobretudo depois do 4 a 3, o que acabou originando a musiquinha, com Renato mandando prender, soltar e canonizar. Era o “Rei do Rio” escrevendo sua história, que terminaria de forma inusitada.

Mesmo longe do Maracanã, eu acompanhava os jogos como um demente na arquibancada, sempre pelo rádio, vibrando a cada gol, cada vitória, com a certeza demente do título. Demente para os outros, claro.

Em determinado momento da narrativa eu perco a escalada das rodadas e dos pontos e acabo por desaguar na arquibancada do Maracanã naquele 25 de junho histórico. Enquanto os Café com Leite dominavam 2/3 do Maracanã, nossa torcida enfurecida não parava de cantar o óbvio, pelo menos os que souberam enxergar, em alto volume, numa supremacia sonora quase constrangedora, desde 2 horas antes do início da partida decisiva.

Lembro até hoje da entrada da Young Flu na arquibancada. A energia daquele momento – tá chegando a playboyzada – ainda se manifesta na minha pele e no meu espírito, mais do que na lembrança, sempre que revivo aquele momento.

O que houve, enfim, foi que o óbvio aconteceu. O Fluminense não tomou conhecimento do Flamengo, que não viu a cor da bola no primeiro tempo. Gol de Renato, gol de Leonardo, 2 a 0 Fluminense e a impressão que tínhamos era de que o Centenário dos Café com Leite terminaria com uma humilhante goleada.

Bom, eu me lembro também de que ao sair do Maracanã após aquela semifinal contra o Boca não tinha mais dúvida de que o Fluminense ganharia a Libertadores de 2008. Mal sabia que era aquele o ingrediente mais picante da tragédia que se avizinhava.

O enredo daquele segundo tempo do Fla-Flu teve traços similares. Ao invés de “do caos à eternidade”, era “da eternidade ao caos”. Não sei por que, mas ainda penso que aquela final com a LDU foi fruto da inspiração do Roteirista, que, em seus caprichos, decidiu reservar ao seu Fluminense o papel de protagonista da maior tragédia do futebol.

Reservadas as devidas proporções, era o que pensávamos naquele fim de tarde, início de noite, de 1995. O Flamengo empatou e tudo que me veio à cabeça foi a memória dos insucessos recentes, dos dez anos sem título. Tudo depois daquela arrancada espetacular, que parecia roteiro de filme hollywoodiano. Não fazia o menor sentido, mas a justa expulsão de Lira, deixando-nos com menos um em campo, a menos de dez minutos do apito final, era a prova de que vivíamos um frustrante anticlímax.

A romaria Maracanã afora foi interrompida por gritos, lágrimas e abraços, seguida de uma correria desatinada estádio adentro, sob as próprias pegadas da desesperança, apagando-as impiedosamente com o verde da esperança redivivo.

Ninguém sabia ainda que o gol tinha sido de barriga. O que importava de quem ou como tinha sido o gol? Não estávamos preocupados em reconhecer o grande herói, porque o herói naquele momento era a História, era a mística do Fla-Flu se reinventando, escrevendo uma página para a eternidade.

Quando veio o apito final o que eu me lembro foi de um pranto incontrolável que deve ter durado uns cinco minutos. Eu sabia o que sofrera naqueles anos todos que haviam antecedido aquele momento. Parecia que tinha acabado de me livrar de um saco gigante de cimento que carregara nos ombros por nove anos.

A história daquele título é muito mais que o gol de barriga, em que pese a mordaz ironia do desfecho daquele parto doloroso, que concebeu o Fluminense real, gigante, glorioso, na visão de uma geração inteira.

É a história do fim de um calvário de nove anos de frustrações. É o arremate genial de uma história improvável, e por isso mesmo fantástica, de um time que era o melhor, mas que esteve perto de vagar nas trevas da insignificância por semanas, apenas esperando o desfecho esperado por todos, como se tudo aquilo não fosse parte de um Fla-Flu.

Panorama Tricolor

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