O gato angorá (por Alva Benigno)

alva benigno green

Moreira esquenta seu colo. O robe de chambre de cetim lilás toca seu corpo nu, de forma delicada. Sentado à meia luz, escuta o Réquiem, de Mozart, pensando na morte de suas práticas mais usuais. Estava enlutado. Um Centro de Treinamento em bairro de seres desagradáveis, emergentes e pobres, perto de favelas, das milícias, dos pagodes, de Soweto, o desagradava. Suas vísceras se embaralhavam só de pensar que deveria passar a se deslocar até esse novo lugar para sabia lá como para refazer seus esquemas. Em casa, somente o estilo de música autorizado acariciava seus ouvidos. Nada de música de corvéia! As pantufas esquentavam seu coração nobre de neto de fazendeiro escravista. Amava-as porque se lembrava do Museu da Família Imperial, em Petrópolis: sempre quando chegava, a funcionária se comportava como a escrava vassala e o empantufava. Entrava em êxtase vendo pessoas curvando-se na sua frente.

Moreira, o gato angorá de Chiquinho Zanzibar, ronrona alto e possante sob sua genitália. Tudo treme. Numa das mãos, um copo de conhaque, e não da cachaça mais barata dos bailes da juventude, vai inebriando todo o seu corpo tenso. Olhos cerrados diante da TV, observa furioso o homem de fala simples e direta, cheio de ironias, narrar a nova fase de seu time. Se ele ia bem, Zanzibar ia mal. Aprendeu a fazer grana na desgraça alheia. Seu tio do DOI-CODI o havia ensinado as manhas.

Época de declaração de Imposto de Renda sempre mexia com ele. Administrava os imóveis herdados, com a ajuda de Arcanjo Calabouço. Chiquinho agora me vem com essa! Não bastasse me entorpecer com suas idéias hitlerianas, fanfarronava de amigos do presente embolorado de sua vida moribunda. Calabouço era o braço direito de seu tio, depois servindo de muleta para suas picardias e para lavar sua renda, tornando-o um homem branco de bem da zona sul carioca tradicional. Casas alugadas para bingos administrados para falir os pensionistas vetustos, e também para diretórios de partidos políticos.

Ocorre que Calabouço andava perturbando a alma de Zanzibar ao ter que lidar com o travesti que lhe achacava.

No final dos anos 1970, havia se apaixonado por uma dançarina na Galeria Alaska, ainda confuso se assumia ou não seus desejos eróticos para sua família. Vivia intensa paixão, quando descobriu que a Pantera Negra tinha outro amante. Homem de dedos grossos e coberto de ouro, sapato de cromo alemão, costeletas espessas, não poupava sua força na hora das festas de Baco. Um homem acaboclado, da pele encerada. Uma espécie de Calígula suburbano, araponga barra pesada, trabalhava para o jogo do bicho além de zelar pela família, pátria, moral, bons costumes e propriedade privada. Domou a Pantera, obrigando-a a ser somente sua.

Anos mais tarde, telefonemas misteriosos assolaram Zanzibar. A música muda. Entra Maria Callas e as idéias não me chegam muito bem. Árias de Elektra, isso mesmo! É o que eu escuto. Uma voz grita com Zanzibar, que chora como mocinha pudica, palavrões ecoam se misturando ao da soprano.

Não era fácil assumir comportamentos sexuais alternativos aos dos machões dominadores ou das mulheres recatadas, naqueles tempos. Amores e tesões proibidos alimentavam as sombras das criaturas da noite. Desse cenário de perturbação total, de gozo secreto, de vidas múltiplas, surgiram muitos dos Chiquinhos. Infeliz daquela pessoa que não vive plenamente seu erotismo… Rancores inevitáveis e ressentimentos incuráveis transbordando pelo mundo real e, nos dias atuais, pelo virtual, também, do tamanho de letras garrafais. Agora, Pantera ressurge querendo ajuda de Zanzibar. Diz que dele possui imenso dossiê, construído por anos com o intuito de se proteger de futuro incerto para pessoas com a sua conduta sexual.

Maravilha! Mas Chiquinho volta dos templos gregos e torna sua tragédia o centro de nossa miserável comunicação… Não tendo como competir com Calígula, perdeu sua paixão e resolveu fazer o papel de homem. Uma espécie de identidade de super herói ao inverso. Sentiu-se castrado no seu amor que tentava viver e até mesmo assumir. Agora, Moreira esquenta e embala a nova castração do ébrio Zanzibar, assombrado pela alegria do novo e firme comandante, pelas ameaças da Pantera e da imponente figura de Arcanjo.

Panorama Tricolor

@PanoramaTri

Imagem: alva