Lucro por quê – IV (por Luiz Alberto Couceiro)

LUCRE
“Eu não pagaria isso tudo por esse jogador! Ele não vale isso tudo! Não dou nem um real pra esse cara vestir a camisa do meu time! Que absurdo esse jogador ganhar tanto assim!” Canso de escutar essas frases. Elas se repetiram no início de 2012, ao menos para nós, que torcemos pelo Fluminense, em dois momentos marcantes: a contratação de Thiago Neves e as primeiras atuações de Wagner. Não me cabe aqui, e nem tenho vontade de fazer isso, dizer se isso está certo ou errado. São opiniões que mostram o quanto o universo de referências dos torcedores está distante do dos jogadores, grandes patrocinadores e dirigentes dos principais clubes de futebol do Brasil, no que tange às variáveis usadas para fazer esse cálculo. Sim, porque esses salários, tais como quaisquer outros, são calculados. Quem está pagando coloca valores morais e outras tantas variáveis em forma de números, que retratam o que se pode dispor naquele momento para ter aquele jogador em uma equipe.

Os valores não são obra da genética ou de tipo algum de força mística ou mágica. Não têm conexão com as leituras que as sinapses nervosas produzem em nossos cérebros, e muito menos remédios para distúrbios psiquiátricos, os populares “tarja preta”, podem responder por isso modificando as respostas aos estímulos que recebemos. Eles são socialmente construídos nas interações e formas de significação das experiências de vida. O que uma pessoa ou um grupo paga por algo não significa que esse objeto de desejo tenha valor universal. Muito menos que corresponda às vontades de outros grupos. Pode-se ter um mesmo objeto desejado por mais de um deles, até. No capitalismo, o que se vê é a mão-de-obra produzindo em forma de trabalho remunerado três coisas que estão intimamente ligadas por serem interdependentes: salário, mais-valia e lucro. Algumas horas pagam o salário, muitas das restantes do trabalho geram lucro, e a diferença entre ambos esses fatores é a mais-valia. Essa teoria geral foi elaborada e explicada em 1867 por Karl Marx, abrindo o único volume de O Capital que fora publicado durante sua vida. São esses fatores e mais o que as pessoas afetivamente desejam que seja satisfeito que também fundamentam o que Marx chama de “fetiche da mercadoria”. Tudo isso não pode ser compreeendido de maneira adequada sem lembrar que Marx havia elaborado uma teoria da história. Mas o que diabos é isso, o leitor pode estar se perguntando?

Marx argumenta que os conceitos formulam o que se vê, o que se pesquisa, em termos abstratos, organizando as idéias. Contudo, os fenômenos se dão no tempo, nos lugares, no âmbito das relações sociais que produzem e são produtos de valores morais e éticos. Os conceitos são ferramentas, orientam perspectivas. Nesse caso, nunca existirá conceito em si, como capitalismo em si, futebol em si. Portanto, sempre há as perguntas que norteiam nosso pensamento: quando, onde, entre quem, em quais situações, sob quais condições, por meio de quais valores as coisas acontecem? O cenário social que produz tudo isso também é composto pelos conflitos de interesses e as disputas para os grupos fazerem valer suas vontades, suas idéias, que guiam suas ações com justificativas com certo grau de elaboração clara, identificável pelo próprio grupo e pelos seus opositores.

Bom, mas que isso tem a ver com futebol? Se o futebol for jogado em uma sociedade, aliás, se for produto de relações sociais no âmbito do capitalismo penso que nos ajuda a pensar algumas coisas. Principalmente para entendermos a existência social dos astronômicos salários dos jogadores. Essa frase já diz muita coisa: se qualifico alguma coisa, isso implica em dizer que há outros níveis de qualidade dessa mesma coisa. Portanto, há salários não-astronômicos.

Os valores se dão também por comparação. Por outro lado, alguns leitores também podem estar mandando aquelas clássicas frases do tipo “mas esse cara é pedante mesmo, falando difícil, citando esse tal de Marx, pagando de comunista ao invés de falar do Flu, do título do Brasileirão, de xingar o Flamengo”! Pois é… Isso, de fato, eu não vou fazer. Aconselho, portanto, a esse perfil de leitor que pare de ler agora essa coluna e não gaste sua mais-valia afetiva com esse capital intelectual que produzimos aqui. Vamos, então, aos condicionantes históricos dos altos salários da mão de obra supostamente especializada.

Desde os anos 1990, a figura do empresário de futebol tornou-se uma necessidade cada vez maior, até se tornar um imperativo, para que os meninos bons de bola e outros nem tanto chegassem a tentar fazer algum teste em grandes ou médios clubes do Brasil. Sem ele, nada era possível. Intermediava tudo para as famílias dos pequenos jogadores, sabia falar a linguagem dos vários mundos sociais que formam o “mundo da bola”. Eles tinham os atalhos, o domínio dos comportamentos aceitos, da forma de dizer, do momento de dar um telefonema, de falar mais firme, insistir na suposta qualidade de seu “garoto”. Eles, principalmente, “conheciam alguém lá dentro” dos clubes. Sempre tivemos muitos meninos fazendo testes nos clubes e a novidade passou a ser a entrada de outras pessoas vistas como “profissionais do ramo” intermediando as relações entre eles e os dirigentes. Antes, ainda nos anos 80, até mesmo nos primeiros dos 90, era possível passar na frente do América, do Flamengo, do nosso Fluminense, claro, mas também do Friburguense e de outros em municípios vizinhos ao do Rio e ver uma placa, dizendo mais ou menos isso: “Testes para jogadores da idade X no dia Y, às Z horas. Os interessados tragam chuteiras e meiões e cópia da certidão de nascimento.” Nem mesmo se pedia para o menino ir acompanhado de algum responsável. Algumas vezes, os “olheiros” (atuais “observadores técnicos”), leiam-se sócios dos clubes, apaixonados e abnegados torcedores, observavam atentamente os campeonatos das praias e do Aterro, dentre tantos outros, para abordar algum menino que entendesse como sendo talentoso.

No capitalismo, um fator determinante nas relações de poder é a propriedade privada, produtora do capital. Seu dono exerce uma força de dominação, não absoluta, claro, sobre a mão de obra e sobre o resultado de sua produção. Mas no futebol o jogador é a mão de obra, espera-se que especializada, o trabalhador, e simultaneamente uma mercadoria, um objeto de desejo. Sem problemas, porque podemos usar conceitos para pensar as realidades históricas – lembram-se? Beleza. Ótimo. Então, como no capitalismo é preciso pensar no quanto de trabalho é necessário para gerar uma mercadoria, a situação dos preços dos jogadores pode ser entendida como sendo fruto do trabalhado valioso e especializado? Sim, mas não só dos empresários. Porque eles, os jogadores, a cada ano se comprometem com pessoas da família que lhes dão suporte – a tia que empresta uma grana para a passagem, o vizinho que ajuda num desabafo, a namorada do bairro que deu uma suporte na época das vacas magras sem bancar uma de “Maria Chuteira”, a mãe que lavava o uniforme, o pai que buscava incentivar nos momentos de derrota. Além deles, vem o cabeleireiro das estrelas e outros profissionais do visual, da estética, o joalheiro, o dono da loja de carros, enfim, os “personais” tudo, que colaboram para que o jovem possa ser aceito rapidamente nos vários planos do “mundo da bola”.

Tudo isso tem custos, todos esses profissionais, além de advogados, fundamentais na hora H do fechamento de um contrato, e outros mais especializados que despertam, e são despertados por, interesses dos jogadores e empresários e dirigentes de grandes clubes, vão deixando o caderninho de contas com linhas e mais linhas. A tabela do Excel só vai aumentando as suas variáveis. Os salários devem dar conta dessa gama de pessoas, dos amigos, e de outros bens que margeiam ou penetram no “mundo da bola”. Lembremos, assim, que alguns jogadores que ganharam esses altíssimos salários perderam muito de seu dinheiro, ao não conseguirem dar conta da difícil tarefa de gerir essa rede complexa de interesses, vaidades, altos e baixos na carreira. Num dia, um gol os coloca lá nas alturas. No outro, uma contusão os põe no estaleiro e sua volta aos gramados pode revelar outra realidade técnica. Pode não conseguir dar mais aquela arrancada, ter a força aliada à precisão para o lançamento perfeito, ou o tempo da marcação do adversário, a antecipação adequada de um passe. São as variáveis históricas da precificação dos jogadores, que na verdade representam uma variedade enorme de valores e relações sociais do “mundo da bola”, que a meu ver só podem ser compreendidas nas condições históricas.

Aliado a isso, a partir dos anos 90, capitalistas, banqueiros, principalmente, e pessoas ligadas ao mercado financeiro, que outrora “investiam” em obras de arte (muito embora, principalmente nesse repaginado Rio de Janeiro, isso tenha voltado a ocorrer), passaram a se dedicar ao futebol. Ao contrário da NBA, que não encontra concorrência internacional para os jogadores de basquete, os países de economia frágil não mais viram o futebol ser jogado tão-somente em sua língua, espanhol e português, principalmente. Passaram a conviver com fluxos de capital, de origem obscura, nunca dantes vistos, e novos personagens de redes internacionais milionárias. Essa nova situação tornou mais complexa ainda a precificação de muitos de nossos jogadores, com histórias de sucesso e fracasso no quanto eles valiam em termos de capital, mão de obra, mais valia e preço. Isso não dá indícios de que irá se reverter. Aguardemos os novos cenários.

Luiz Alberto Couceiro

Panorama Tricolor

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