Lágrimas ao microfone (por João Marcelo Garcez)

Lágrimas ao microfone

Aconteceu de novo. Vinte anos depois, em maio. E outra vez pela voz de Galvão Bueno, durante uma transmissão de corrida de Fórmula-1, categoria para a qual os holofotes brasileiros parecem ter se apagado desde a saída de cena de Ayrton, morto na pista – como confirmou Betise Assumpção, sua assessora na época, em entrevista este mês ao portal Terra –, vítima que foi de uma emenda malfeita na coluna de sua Williams, conforme inquérito da Justiça italiana.
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Vivemos a dor, o trauma daquela batida, e jamais a esquecemos. Talvez venha daí o muito da rejeição atual do nosso país à Fórmula-1. E não apenas pelo fato de há muito não termos pilotos competitivos, mais precisamente desde o acidente com Senna.
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Durante este mês de maio, em alusão às duas décadas de sua partida, a imprensa publicou vasto material sobre Ayrton, lembrando seus grandes momentos, seus amores, suas brigas e, claro, sua incrível capacidade de pilotar. Tudo lido e assistido com nostalgia, com uma saudade gostosa de quem já se acostumou com o sentimento da perda, mas sem jamais deixar de lamentá-la. 7 - Copia Não teve o mesmo impacto do episódio com Ayrton, mas foi impossível não fazer o elo com a morte do tricampeão o que aconteceu domingo passado, durante a transmissão do Grande Prêmio de Mônaco. A começar, como disse lá em cima, pela voz do Galvão.
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Com o volume da TV baixinho, repassava um texto que havia acabado de escrever, quando o narrador comunicou, em rede nacional, o falecimento do ex-jogador do Fluminense Washington, que há anos sofria de Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA). Estremeci com a notícia. Depois, a tristeza foi inevitável, embora já soubesse de seu estado terminal.
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Em tempos idos, Washington costumava frequentar um restaurante da família no Shopping Rio Sul. Ia com boa parte do elenco tricolor, como seu parceiro Assis, e outros como Branco, Delei, Romerito, Duílio, Tato, Leomir. Era uma época bem mais simples, em que os jogadores não tinham toda essa pompa midiática de agora. Saíam do treino e iam para lá, onde papeavam, beliscavam e tomavam seus chopes sem serem patrulhados nem marginalizados, tais como uns foras da lei.
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Ayrton Senna não frequentava o restaurante da família. Mas era como se fosse da família. E de todos os brasileiros. Seu carisma, aliado à imagem de vencedor, faz dele até hoje muito presente no imaginário coletivo da família nacional.
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Na nossa, lá em casa, havia uma brincadeira em torno dele, mais para pegar no pé do meu irmão, Gustavo, fã incondicional de Ayrton. Diferentemente de meu pai, que naturalmente acompanhava corridas havia mais tempo que nós, e encantou-se pelo estilo apurado de Nelson Piquet, já tricampeão quando Senna ascendeu na categoria.
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Resolvi acompanhá-lo nas brincadeiras de comparação entre os pilotos. Endossava que Piquet sempre fora melhor que Ayrton. A verdade, porém, é que jamais, em tempo algum, senti ou percebi desta maneira. Para mim, Ayrton era a personificação de um cara mega bem-sucedido, de talento raro e sem-igual. O Brasil que dava certo, resumidamente.
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Por tamanha admiração, como milhões de brasileiros, também era daqueles que acordava no meio da madrugada para ver os GPs do Japão e da Austrália, que na época fechavam a temporada. Todos os três títulos de Senna, por sinal, foram conquistados em Suzuka, a cerca de 300 quilômetros da capital Tóquio.
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Washington, boleiro, certamente não conquistava títulos em autódromos, mas em estádios. E teve também a sua Suzuka – o templo do Maracanã.  Washington campeão do Brasil.Foi no lendário Mário Filho que o Negão levantou o troféu de campeão do Brasil pelo Fluminense (foto) e, por três vezes, de melhor do Rio de Janeiro, numa época em que os Estaduais, então semestrais, tinham peso infinitamente superior ao atual.
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Foram-se ambos, em maio, levando com eles as alegrias que nos traziam, fossem em gols, fossem em ultrapassagens, muitas pela voz de Galvão.
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Que, também na tristeza, cumpriu seu ofício.
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Ah, continuo não gostando mais de Fórmula-1.
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João Marcelo Garcez (joaogarcez@yahoo.com.br) é jornalista, publicitário e escritor, havendo já publicado cinco livros. Há mais de uma década atuando na área de Comunicação, já trabalhou em empresas como TV Globo, Globosporte.com, Jornal dos Sports e DM9DDB. Bicampeão do Top Blog (2010 e 2013), espécie de Oscar da internet, Garcez escreve mensalmente a este Panorama Tricolor.
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