Editorial – O terraplanismo da venerável coletiva tricolor

Que as veneráveis entrevistas coletivas do Fluminense atual são marcadas pela conjugação do cinismo com o terraplanismo verbal, não há qualquer novidade.

Falando diretamente para agradar seu gado de estimação, é literalmente conversa para boi dormir.

Mas a reprodução do parágrafo abaixo, dito pelo mandatário nesta semana, chama atenção, merece registro e, claro, crítica.

“As pessoas não sabem o que é crise. O que o Fluminense passou na década de 1990… Vi o Fluminense com dez meses de salário atrasado, sem máquina para cortar grama, colocando animal para comer grana porque não tinha dinheiro para consertar a máquina, funcionários pedindo dinheiro emprestado e as pessoas querendo inventar crise com o Fluminense classificado para as oitavas da Libertadores, em sexto no Brasileiro de pontos corridos, bicampeão carioca, algo que não conseguia há 40 anos e não ganhava um título há dez. Para mim não são tricolores que querem ajudar o Fluminense. Não vou nem dizer que não são tricolores de verdade poque não faço avaliação do amor das pessoas pelo Fluminense. Talvez não saibam o que aconteceu na década de 1990, porque não eram nascidos ou porque não iam por estádio. Tem um monte de cara que diz que é tricolor e começou a ir no estádio há dois anos. Como vou no estádio desde que nasci em todos os jogos, da Série C, com chuva, com sol, eu sei o que é uma crise.”

Vejamos o carnaval de sandices.

Primeiro, a insistência do mandatário em marcar oportunamente um período muito difícil vivido entre 1996 e 1999, imediatamente superado pela parceria com a Unimed. Um ano depois da Terceira Divisão, o Fluminense foi o terceiro colocado do grupo principal da Copa João Havelange. Nos dois anos seguintes, chegou às semifinais do Brasileirão. De quebra, ganhou o Carioca de 2002, título do centenário. Três anos depois da terceira divisão, o ataque do Fluminense era comandado por Romário, não Marrony ou Alexandre Jesus.

A insistência é simples: desviar a imagem do próprio mandatário como comandante de desastres mais recentes como em 2015, quando o Fluminense só não foi rebaixado por uma vírgula. A amnésia presidencial omite a desastrosa campanha de 2019, já em sua gestão. As idas recentes do Fluminense à Libertadores não constituem qualquer façanha homérica, simplesmente porque o número de vagas brasileiras na competição hoje é muito maior do que antigamente. Se os critérios atuais valessem para o passado, o Flu teria se classificado em 1986, 1988, 1991, 1995, 2000, 2001, 2005 e 2007…

Segundo: é patético generalizar a década de 1990. Em 1991, o Fluminense chegou às semifinais do Brasileirão e decidiu o título carioca. Em 1992, decidiu o título da Copa do Brasil – que só perdeu para a arbitragem infeliz do falecido árbitro José Aparecido de Oliveira. Em 1993, novamente decidiu o Carioca, assim como 1994. E em 1995, ganhou o fantástico título carioca, também chegando às semifinais do Brasileirão. Todas essas temporadas foram de muita luta e penúria econômica do clube, que nem de longe contava com a enorme receita atual do Fluminense.

Mas é interessante que o mandatário tente definir quem quer ajudar o Fluminense ou não. Em seu caso, ele mesmo jamais ajudou. Foi remunerado desde sempre como estagiário e, posteriormente, como prestador de serviços. Não foi remunerado como dirigente por naturais impedimentos do estatuto tricolor, mas ganhou visibilidade a ponto de seu escritório prestar serviços para inúmeros outros clubes brasileiros. Graças à meritocracia, agora finalmente pensa estar ajudando o Fluminense: depois de se tornar milionário, pode ser dirigente sem remuneração. A dúvida real é se sua ajuda é boa para um clube que rifa seus jovens jogadores e contrata veteranos com altos salários que, invariavelmente, vão à Justiça e fazem acordos com o clube, evidentemente sangrando as finanças tricolores.

Sobre salários atrasados e precariedade do passado, fontes do próprio clube sentenciam que o mandatário seria incapaz de passar por um detector de mentiras, caso afirmasse o saneamento contábil do Fluminense. Os balanços ressalvados, os resultados matemáticos incompatíveis e operações extraterrestres como as aquisições de Guga, Cris Silva e Caio Paulista (sem contar Marrony, Alan, Felipe Melo, Willian Bigode, Pineida, Thiago Santos, Diogo Barbosa, Jorge e grande elenko), deixam dúvidas gigantescas sobre a saúde financeira tricolor.

Mas o pior de tudo é criticar de maneira subliminar a torcida que, por diversos motivos, hoje não está nas arquibancadas lotadas do Fluminense atual – coisa que muitos outros presidentes não tiveram. O Maracanã abriga 70 mil torcedores e a torcida do Fluminense é estimada em 50 ou 60 vezes da lotação do estádio. Qualquer ignorante sabe que a torcida do Flu é muito, mas muito maior fora do Maracanã do que dentro. Além de patética, a declaração beira à xenofobia. TODO TRICOLOR MERECE RESPEITO. Um discurso divisionista, rasteiro, para desunir torcedores de uma mesma paixão. Enquanto isso, o Fluminense de hoje tem o maior apoio da torcida na arquibancada em décadas, gerando inclusive muito dinheiro para o clube.

A segunda metade da década de 1990 foi muito difícil, mas a união da torcida e a força do patrocinador – leia-se Celso Barros – conduziram o Fluminense de volta a seu leito natural. Um momento há muito superado, com grandes títulos, nenhum igualado pela gestão atual.

Em termos de patetocracia, o mandatário se equipara ao atual auxiliar técnico do Fluminense, que recentemente disse sobre os jogadores serem o maior patrimônio da instituição. Como se vê, ambos sofrem de profunda ignorância sobre a história do clube onde simplesmente foi criada a torcida de futebol.

Ainda sobre o sofrido ano de 1999, é compreensível que o mandatário e tantos tricolores tenham vivido um grande trauma, naturalmente, mas de lá para cá muita coisa boa aconteceu e não foi apenas a partir de 2019.

Naquele ano difícil para o Fluminense na Série C, quem teve a chance de sorrir muito foi a torcida botafoguense, decidindo a Copa do Brasil no primeiro semestre. Depois do vice-campeonato diante do Juventude, muitos jovens alvinegros entraram em profunda depressão. Dá pra acreditar que vários deles revoaram para a torcida tricolor depois do título da Terceira Divisão, num verdadeiro vira-casaca? Há quem diga que alguns deles foram felizes para sempre com as três cores da vitória. Ah, o amor…

PS: quem comemora sexto lugar no Brasileiro, que dobre sua língua para falar de Francisco Horta e da inigualável Máquina Tricolor.