A última partida do Leo (por Paulo-Roberto Andel)

Dia desses nos esbarramos em uma aula exótica de Português e logo marcamos de ir ao Maracanã, aquele outro Maracanã. Desde então vimos muita coisa: São Paulo, Volta Redonda, São Januário. Muitas vezes.

Tudo passa e assim se passaram dezesseis anos. Pela última vez, ao menos durante algum tempo, verei um jogo do Fluminense com meu amigo Leo.

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Simpático o uberman. Consigo pagar no pix. Rapidamente quero me livrar daquele gradil maldito em forma de labirinto. Num instante subo a rampa solitariamente. Um rapaz e uma moça vendem muitos copos do Fluzão.

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Gosto de entrar no estádio deserto e quase apagado. Eu sempre me lembro do tempo em que eu deitava na geral, olhava para cima e via um grande disco voador desenhado pela antiga marquise do Maracanã. Isso tem 40 anos.

Procuro também por meus fantasmas prediletos. O concreto que não mais existe, meus pais mortos, meus amigos mortos, meu irmão longe, eu mesmo longe de tanta coisa mas perto de algo que não pode ser visto, mas sentido.

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Chegou a hora das fotos. Heitor, Lenyr, Gabriella linda com os filhos lindos. Abraçamos os amigos, trocamos afetos, a arquibancada começa a encher. Não são quinze para as cinco, não há uma nuvem espessa de pó de arroz que dure dez minutos, nem cinquenta bandeiras grandes. Cadê o Bernardo?

Não vinha aqui há um ano e oito meses. Não vinha a este setor há cinco anos. Escrevi demais.

Que delícia o cachorro-quente! Volto a ter dez anos de idade, sonhando com um enorme passado pela frente.

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Começa o jogo e o Fluminense logo marca. Fred cobrou bem o pênalti. Depois o time recua, recua e o jogo fica num disputado banho-maria. A fraqueza ofensiva do Inter me impressiona, felizmente. Lenyr está confiante. Temos raça. Falta bola. Também ficamos recuados demais, o que é um problema até para quem joga defensivamente.

O gol no comecinho alivia as coisas, dá confiança. Marcos Felipe faz um defesaço no ângulo direito. Cadê meu Félix, meu Wendell? Cadê Edinho dando esporro em geral e pulando feito louco? Pintinho? Estou longe demais.

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Vou ao banheiro. Cinquenta metros depois é o caos: gente andando de um lado para o outro no corredor, rezando, sonhando, falando sozinha, policiais especulando um sanduíche.

A enfermeira do posto médico, uma linda mulher negra sorri e grava um vídeo da torcida perto da lanchonete. Ela diz algo enquanto me aproximo: o padrasto está emocionado com a imagem enviada. Eu disse “parabéns a ele por ser tricolor e por ter uma enteada tão bonita.”. Ela sorri. Linda.

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Leo chega com o Lucas no intervalo. Primeiro jogo do filho. O Flu se defende e ataca como pode. Minha cabeça rolando no Maracanã. Ok, ainda estão rolando os dados. São nossos últimos momentos até um longo tempo que não sabemos prever. Torcemos por Rissut, por David, por Ciel, por Rodriguinho: quem vai ter a cara de pau em dizer que torcemos contra?

O jogo não tem muitas variantes, mas Fred perdeu um gol feito. O tempo não para. A torcida não para de cantar. Tudo é rápido e num segundo estamos em sete minutos de descontos. Cadê meu pai? Cadê o João Carlos? Cadê o Dória? O Raul ficou em casa.

[Uma última noite feliz

O Fluminense não vai perder mais. Está selada a vitória, é questão de tempo. Não há brilho, mas força. Não há poesia, mas expiração.

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O jogo acaba. O Fluminense vence. A torcida explode. Estamos felizes, ou aliviados.

Num súbito, Leo desce a rampa com Lucas e eu me lembro de quando eu mesmo era o Lucas, enquanto Leo era o meu pai, enquanto eu carregava um balão branco do Fluminense amarrado num barbante, talvez numa noite de 1974, tudo longe demais.

Na calçada, nos abraçamos e nos despedimos como se nada fosse mudar no dia seguinte. Eles pegam o Uber, eu sigo com Lenyr e o deixo na porta de casa, até seguir em frente e pegar um táxi na São Francisco Xavier deserta.

Dez minutos depois, estou tomando banho, pensando nessa vitória exclusivamente de raça e lembrando de quantos jogos eu e Leo vimos juntos – talvez tenhamos sido a companhia mais constante na trajetória tricolor de cada um. Não sabemos quando veremos outro jogo juntos e, para falar a verdade, é claro que não pensamos nisso, mas não temos sequer a certeza de que ele acontecerá, porque tudo pode mudar para sempre num segundo.

Tomara que tenhamos um belo passado à nossa frente. Assim seja. Meu amigo vai atrás do american dream, que tudo dê certo para ele. Boa sorte é pouco Será muito mais. Fizemos coisas do baralho: este PANORAMA é só uma delas.

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Catorze horas depois, estou no trabalho ouvindo “The Endless River”, o álbum derradeiro do Pink Floyd. Tínhamos um aqui anteontem, eu o vendi e resolvi trazer um meu de casa para ouvir.

“Endless” é basicamente uma homenagem à memória de Rick Wright. O guitarrista usou partes gravadas pelo amigo e, entre elas, encaixou a sua guitarra inconfundível que soa espacial, interestelar, como se atravessasse os tempos e as memórias.

Nada pode ser mais parecido com isso do que o meu Fluminense, recheado de viagens e distâncias, de perdas e lembranças, de futuro e vida. Das vitórias mais improváveis e surpreendentes, da elegância e da decadência.

The Endless River. O rio interminável. Deve fazer sentido. Sempre que ouço “Run like hell” penso em decolagens de avião. É o Leo.