20 horas de Fla x Flu (por Paulo-Roberto Andel)

COLUNA EM CONSTRUÇÃO DURANTE O DIA 16/03/2024

01

00:38h, dia de decisão, estou sem sono.

Passei mal de tarde, vim do trabalho para casa de táxi. Senti as pernas fracas. Parecia a hora de morrer? Não. Cheguei mal, tomei um banho, deitei em frente ao ventilador turbo e melhorei.

Falei do Fla x Flu escrevendo, conversando amigavelmente e em lives.

Raras vezes estivemos tão desacreditados. Eles estão melhores, nós estamos desfalcados e ainda não jogamos nada este ano.

Hoje o Maracanã é deles.

Tudo está muito do contra, mas não custa lembrar: no Fla x Flu, muitas vezes o desacreditado nocauteia o favorito.

Vai que dá?

02

01:25h, tomei um banho, estou sem sono, o som da TV é meu amigo contra a solidão. Abro um pacote do correio com meu CD do New Order. Deito, mexo no celular, quase todos foram dormir, espio gatas extraordinárias, os pensamentos se misturam e tudo é Fluminense.

O primeiro Fla x Flu no Maracanã que me lembro com toda clareza foi num domingo de chuva de 1978. Fui a outros antes, mas esse é o primeiro mais nítido. Nós havíamos ganhado na Taça Guanabara por 2 a 0, no que ficou conhecido como o Fla x Flu da água no chope – deles. Chovia nesse jogo que fui. Lembro do grande Wendell tentando defender uma bola baixa e ela subir para o ângulo esquerdo. Perdemos por 4 a 0. Eu chorei e fiquei muito triste. Nem podia imaginar que aquela noite mudaria a minha vida para sempre.

Um ano depois, a vingança foi plena. Vencemos por 3 a 0, Rubens acertou um chutaço, Paulo Goulart defendeu pênalti de Zico e Cristóvão marcou um golaço. Estávamos redimidos.

De certa forma eu ainda sou aquele garoto admirando Wendell e Renato, Rubens Galaxe e Miranda, a categoria plena de Edinho e Pintinho. as arrancadas de Robertinho e Zezé.

Queria meu pai e meu irmão por perto. Minha mãe. A Marina. Queria o João Carlos também, o Luizinho e o Gota. Tudo é inútil. Estou sozinho e a caminho do Fla x Flu.

Queria o Super Ézio agora. Assis e Washington, Doval, Denílson, Flávio.

Não há ninguém por perto.

03

01:40h, Renato Russo:

“Será que vamos conseguir vencer?”

04

A elegância sutil de Bobô. E Ézio, e Renato. Eles infernizavam o Fla x Flu.

Você lembra daquele golaço do Vander Luiz em 1990?

E o gol de cabeça do Alexandre em 1993, de virada? Cruzamento (furado) de Zé Teodoro.

E o gol de Dirceu de fora da área? E o de Nildo? Tudo se mistura.

Eles são favoritos, nós estamos desfalcados e não temos jogado nada. É no Fla x Flu que os mais fracos prevalecem?

05

03:20h, depois de um cochilinho, acordo com uma dor filha da puta no pé. Não irei ao Maracanã. Será que algum filha duma puta dirá que não sou um verdadeiro tricolor por estar doente?

Falei com o Vid no WhatsApp. Super voz, super tricolor, super carioca. Está em Teresópolis, terra maravilhosa.

Será que o Gustavo Corsi vai?

Lembrei do Raul. Já vimos Fla x Flus de arrepiar em todos os sentidos. Hoje estaremos separados do mundo inteiro. Eu sou o tricolor solitário neste sábado, um transeunte carregando uma trouxinha de lembranças nas costas e caminhando sem rumo.

Aquele gol do Amauri com Andrade caindo sentado no gramado, último minuto, 1982. A torcida xingava muito, Amauri não era pleno tecnicamente mas era dedicado demais. Bom, lá se vão 42 anos, mas parece que foi agora. No futebol tudo é tão vivo que desafia o tempo. Deu vinte mil pessoas, um público insignificante à época. O mundo mudou, o Fla x Flu também.

06

Dormi cerca de cinco horas. É pouco, mas no estágio atual está bom. Continuo com a dor no pé mas nem de longe com a sensação de morte na sexta. Só quero um sábado de paz. Segunda-feira volta a guerra pela sobrevivência.

08:30h, eis um sábado com cara de domingo.

Recebi uma mensagem cética do Jácome. Compreendo. Não está fácil, nem um pouco fácil. O que me resta é abrir a cortina do passado, lembrar meus mortos e feridos e esperar que, ao contrário de todas as expectativas, o Fluminense consiga uma de suas classificações mais sensacionais e improváveis de sua história.

Do nada, me vem à cabeça um clássico de Steve Winwood: “While you see a chance”. Enquanto você vê uma chance. Faz todo sentido.

Num sábado qualquer de 1981 ou 82 eu estaria às oito e meia da manhã chutando bolas na eterna trave do Juventus, Figueiredo Magalhães com Avenida Atlântica, coração de Copacabana. Nós, tricolores, éramos todos Edinho. Cláudio Adão também. Robertinho, Zezé. Mário jogava demais. O Deley, à época com i.

No último Fla x Flu de 1981, nosso boxe contra o rival foi esplêndido. Ao contrário das mentiras nos jornais, nós brigamos firme e o placar de 3 a 1 não diz o que foi nosso jogo. Acertamos a trave, tivemos gol anulado, Tadeu foi expulso, perdemos pênalti. Edinho foi monstruoso demais. Mas a gente se vingaria, a gente sempre se vinga, o Fla x Flu é a única expressão da vingança saudável.

Queria que a Marina estivesse aqui. Meus amigos do PANORAMA. O Catalano, que é Vasco e sempre seca o Urubuh. Queria minha família, hoje é Fla x Flu. Seguirei sozinho. Como cantou Gilberto Gil, meu caminho inevitável para a morte em “Cérebro eletrônico”.

Vamos ao café trash. Pãozinho coió, maionese e Pepsi. Há muito sábado pela frente. Será que o Fluminense vai aprontar algo inesquecível para logo mais?

07

10:47h, conversei com amigos no WhatsApp. Queríamos mais jogadores da base no time titular, por motivos óbvios: aumentar a velocidade e força física da equipe. O Fluminense de hoje é um time lento, precisa de combustível.

Não quero ficar pensando na escalação. Pode até dar medo.

Será possível reverter essa desvantagem de três gols na prática? Dois somente não adianta.

Será que John Kennedy joga e entra voando em campo?

As pessoas falam em sorteio da Libertadores, em disputas de temporada, mas acho inviável não pensar no hoje, no agora. Tudo é Fla x Flu, sendo que nós, tricolores, estamos em xeque. E rememoro os versos de Chico Buarque em “Pelas tabelas”: “Minha cabeça rolando no Maracanã”. Chico lançou a música em 1984, num tempo em que o Fluminense era supremo: Paulo Victor, Aldo, Duílio, Ricardo e Branco; Jandir, Deley e Assis; Romerito, Washington e Tato. E Leomir. E Renê. E Vica. E Wilsinho. E Paulinho. Um time de 16 jogadores.

A subida de Assis para a cabeçada imortal do bicampeonato em 1984 é uma página eterna do fotojornalismo brasileiro. Assis, duas vezes Assis.

08

Acabou o Globo Esporte, o Fluminense é tratado timidamente e aquela velha empáfia do rival já começa a ser vivida por seus torcedores.

Não é de hoje. Sempre foi assim.

Os jornais não diziam, mas alguém acha que se levava fé no Fluminense do primeiro Fla x Flu, disputado em 1912? Claro que não! Praticamente todo o nosso time tinha virado rival. No fim, vencemos.

Nós também nos beneficiamos de craques rivais. Marcos Carneiro de Mendonça, vindo do America, foi o primeiro deles. Sua foto no gol, de camisa branca com o provável maior escudo já utilizado pelo Fluminense numa partida, é um marco.

Em 1980, o Flamengo queria se livrar de Cláudio Adão. Pela lei do passe, o Fluminense o contratou por uma ninharia. Adão fez 20 gols e foi o artilheiro do Campeonato Carioca de 1980, além de campeão. E Nunes, que fez quase 50 gols em menos de um ano de Fluminense, acabou sendo o grande herói das decisões flamengas.

14:40h, sinto fome, não almocei, preciso descer para comprar comida. Não quero pratos do iFood. Marina me diz que o calor está infernal em Paciência. O calor tem massacrado o Brasil.

Eu queria sair, dar uma volta, relaxar para ter uma boa tarde e depois encarar o jogo. Meu pé ainda dói muito. Pelo menos passou meu mal estar.

09

A tarde foi de um calor insuportável no Rio, mas aqui não senti muito. Passei a tarde deitado, comi dois sanduíches de atum, conversei com colegas tricolores e o sentimento geral é de que só uma enorme zebra coloca o Fluminense na final do campeonato.

Na Cruz Vermelha, houve uma enorme confusão envolvendo pessoas em situação de rua, uma delas esfaqueada após uma discussão. Quase duzentas pessoas envolvidas. Ninguém liga.

O que será do Fla x Flu? Estamos plenamente conscientes dos nossos problemas e da enorme dificuldade à vista, mas aí vêm as lembranças para nos inebriar e oferecer esperanças empíricas.

Eu, que já vi tanta coisa, vivo uma contradição: não posso desprezar os fatos atuais e o momento, mas também não posso desprezar um componente do Fla x Flu em muitas ocasiões, que é o imponderável, o inesperado e até o inusitado.

O ilógico.

Por isso, o futebol é o mais apaixonante dos esportes: até aqui, o Flamengo tem o garfo, a faca e o queijo nas mãos, mas daí a ter certeza de saborear a fatia há um caminho que talvez, apenas talvez, possa ser longo e surpreendente.

Vivamos as próximas horas como se fôssemos garotos enlouquecidos com o Fluminense em campo.

O que tiver de ser, será.