Zíperes fechando, uniformes sendo recolhidos e pés no chão desamarrando chuteiras. Voz nenhuma se escuta. Nesse silêncio um soluço tímido, consequência do choro de Arias. As lágrimas de Cano não vinham dos olhos, era suor. Mais de raiva do que de cansaço naquele calor de 40 graus do MetLife Stadium. Apesar de ter saído ainda antes da metade do segundo tempo da partida recém encerrada contra o clube inglês, o Rei da América de 2023 estava exausto, ainda assim rompendo o silêncio com um muxoxo e insatisfação:
– No merecia esto, Dios!
Abriu as portas para Nonato desabar. Copiosamente. Dá uma porrada na parede do vestiário como se tivesse culpa. O irracional faz isso, relaciona culpa a quem não tem a ver. Martinelli que nem chegou a botar seu uniforme tem perdeu seu o olhar em outra parede, com a boca trêmula e remoendo os cartões bobos que lhe arrancaram a semifinal.
Mal lembram que essas mesmas paredes escutaram tanta esperança tricolor. Foi o mesmo MetLife Stadium que nos recebeu, na mesma Nova Jersei, para nosso primeiro jogo da Copa Mundial de Clubes da FIFA de 2025.
##########
Aquele apito inicial tinha tanta coisa. Nele tinham todos os maldizeres que o Fluminense recebeu da mídia, de rivais e inclusive de seus próprios torcedores. Desacreditar é pior do que maldizer.
O fraco não incomoda ninguém, se comemoram sua queda ela não é corriqueira.
Naquele apito inicial era o primeiro brasileiro contra europeu desse campeonato histórico. Era o que se dizia: histórico independente do resultado. De Botafogo, Palmeiras, Flamengo e Fluminense, o patinho feio foi o primeiro a representar o seu país e, futuramente, seria o último. Não importa o que falavam por ai. “Se o Flu classificar pras oitavas já é milagre”. O Borussia Dortmund não vinha do seu melhor campeonato alemão, apesar de que no final da temporada engrenou mais próximo do futebol que jogara como finalista da Champions de 2023 (ah, o ano de 2023…). Ainda assim, a gana que o tricolor botou em campo nesse jogo calou a boca de quem falou que ia ser vexame. Renato começa com um 4-3-3.
– NENSE! NENSE! NENSE!
Exclamava a torcida do fundo do pulmão, mesmo sem sair um único gol.
Um 0 a 0 de manchete positiva, primeiro de muitos destaques para John Árias e começo da visibilidade internacional que esse mundialito traria pro Flu. “Fluminense domina o Dortmund”, “Técnico do Borussia exalta Fluminense e celebra empate”, “Fluminense esbanja coragem contra Borussia e mostra que não está na Copa a passeio”. Deixo as manchetes falarem por si.
No estádios dos New York Giants, time tradicional de futebol americano, as três cores traduziram tradição. Superiores do início ao fim contra os alemães, chegamos com o pé direito com um cartão de visitas de se ajeitar na cadeira.
Ainda assim, já era anunciado por John Árias com seu excelente portunhol
– Los próximos jogos seran ainda más difíceis.
##########
– Porra, não dá cara, o João Pedro foi contratado no meio do campeonato. Isso não existe, porra!
Renê desabafava com Samuel Xavier, que mexia a cabeça de um lado pro outro enquanto ouvia calado. Ganso ouve no pé do ouvido e retruca:
– Pelo amor de Deus, Renê. A gente nem conseguiu sair jogando. Todo passe errado sobrava pro Enzo ou Caicedo infiltrar.
Disse o meia, sem querer arranjar briga mas revoltado de não ter tido a oportunidade de jogar na semifinal.
##########
Contra os coreanos parecia o mesmo desenho do primeiro jogo. Dominamos o primeiro tempo com facilidade, mas dessa vez com golaço de Árias de falta… Que precedeu os dois gols do Ulsan ainda antes do intervalo. O jogo na nossa mão derrete logo após abrirmos o placar.
Professor Renato com muita calma explica o que faltava:
– VAMBORA PORRA, VAMO JOGAR!
E com essa tranquilidade bota o time pra frente com três substituições ainda antes dos 15 do segundo tempo, entrando Everaldo, Nonato e Keno. Dos três, dois farão gols ainda nessa partida. Acerto do professor. 5 minutos depois de entrarem, Keno rabisca e passa suave pra Nonato empatar, batendo tranquilo no canto direito do gol.
Pressionamos, pressionamos e pressionamos mais. Vamos virar, Nense!
A torcida fez o que deveria fazer: entoou o padroeiro do Club no momento certo. Digo e repito a importância de não elencarmos A Bênção João de Deus em vão. Era a hora. Mãos abertas aos céus suplicando “ABENÇOA ESSE POVO QUE TE AMA!” E dale bênção com Freytes! Uma das felizes surpresas que tivemos ao longo dessa campanha estatunidense, defendendo bem e ainda fazendo gol. E pra fechar, Árias levanta pra Keno fazer de cabeça. 4 a 2 nos coreanos. Total de quatro pontos na fase de grupos e um jogo restante pra classificação.
##########
Era aniversário de 30 anos do gol de barriga de 1995 e tínhamos Renato no Hard Rock Stadium dessa vez, Miami. Obviamente não admitiu que ninguém além dele fizesse gol nesse dia tão especial. Ainda assim, houve uma, duas, três oportunidades de gol abrindo a partida do Mamelodi, e o então o Fluminense lembra que também joga. Matematicamente falando, para se classificar bastava não perder. Pra não perder tem que jogar.
Foi um jogo diferente dos dois primeiros, o Fluminense não buscou propor do início ao fim e teve que lidar com isso. Aguentar a pressão e não se cansar, nem se desesperar.
– Quando os caras tiverem bem a gente junta as linhas, não se distancia.
Exclamava o professor no cooling break.
O clube da África do Sul é conhecido como “os brasileiros”, com um estilo de jogo próprio do que idealizam ser o nosso. Ah, e o uniforme inspirado na seleção canarinho… Simpáticos, eu diria. Além disso, eles tem no escudo uma mão bem parecida com o L tradicional do nosso argentino predileto. Melhor chance que tivemos foi do próprio, com cruzamento recebido da direita e bola explodindo na trave. Ignácio fez partida de destaque, recebendo o prêmio de Melhor Jogador Budweiser, abençoado pelo morador de rua que invadiu o quarto do seu hotel e foi embora pacificamente, sem levar nada dias antes.
Uma classificação sofrida, soubemos sofrer. Dortmund em primeiro no grupo com 7 pontos, nós em segundo com 5. Com isso, vamos enfrentar o recém vice-campeão da Champions League: Football Club Internazionale Milano, a Inter de Milão. Não dava pra esperar nada muito mais fácil, estávamos entre os 16 melhores times do planeta.
##########
– Não deixa pra depois porque não dá tempo, velho.
Foi o relato emocionado do nosso capitão, Thiago Silva, lembrando de seu falecido padrasto no pré jogo contra os italianos. Todo jogador que entrava em campo naquela segunda-feira deixou alguma coisa em casa. Correndo uns pelos outros, pela sua família, por quem tem carinho.
Já éramos o único carioca vivo na competição. Responsabilidade partia daí. Espelhamos os três zagueiros da Inter com os nossos, Freytes, Thiago Silva e Ignácio. Demonstramos respeito, mas não deixamos de nos impor.
Primeira jogada da partida, Árias afundando pela direita, bola quica na pequena área e no que ela sobe Cano cabeceia pra debaixo das pernas do goleiro Sommer. Três minutos de jogo, o suficiente pra abrirmos o placar. Para pra ver que começou o show do meu Tricolor.
Mantivemos a postura e não retrancamos, como muitos sugeriram que faríamos. O Fluminense é bem mais do que esses entendem. Um primeiro tempo forte, parelho, com oportunidades de ambos os lados, cinco cartões amarelos e aos 40’ um gol impedido do Ignacio, corretamente anulado.
Voltamos do segundo tempo com a mesma postura, do lado de lá três alterações. Estavam visivelmente insatisfeitos com nosso bom futebol ofuscando o europeu. Não vou tirar o mérito de Fábio, que não é de hoje que faz atuações excepcionais. Mas os louros ficam com Hércules, promessa nordestina que nesse campeonato mostra que se adaptou à nossa camisa. Golaço do garoto, tem estrela. Gols aos 3’ e aos 90+3’. 2 a 0 eliminando um dos maiores times da Champions, brasileiros sendo superiores à lógica mercadológica que o futebol se afoga ano após ano.
O Fluminense nunca perdeu pra uma equipe italiana. E não é porque seu camisa 10 é titular na seleção argentina campeã do mundo que isso vai mudar. Estamos entre os 8 melhores times do planeta. Êxtase no Rio de Janeiro, o Fluminense é indiscutivelmente uma das grandes equipes dessa Copa do Mundo de Clubes, jogando um futebol de coragem e fidalguia. Vitória do tamanho do jogo, do tamanho do Club.
##########
Fábio sentado de cabeça baixa com o terço na mão. Rezando e agradecendo por ter chegado até a semi. Confiando seu fôlego ofegante em algo maior, Deus. O mesmo que lhe trouxe até o jogo contra o Chelsea foi o que permitiu ele próprio perecer. Mistérios da fé, vontade divina, escrever o certo por linhas tortas, chamem do que quiser. Exige muita crença quando se tem o retrogosto amargo da derrota impregnado na boca. Yeshua, Jesus, Allah. O futebol hoje bota na frente quem se alinha com outra divindade: a do cifrão.
##########
A falta de fair-play na liga da Arábia Saudita é uma discussão fervorosa. De um lado, os clubes tradicionais da região, menos abastados porém beneficiados com a visibilidade que o campeonato passa a ter com jogadores como Cristiano Ronaldo e Neymar na vitrine. Do outro, os queridinhos dos Xeiques e do PIF (Fundo de Investimento Público do governo da Arábia Saudita) bancando esse buzz midiático e importando estrelas do mundo todo para jogar no Oriente Médio. Inclusive patrocinando a própria Copa do Mundo de Clubes. Quem diria?
O Al-Hilal que disputou as quartas de final contra o Fluminense é membro de carteirinha do segundo grupo. Rios de dinheiro não foram suficientes pra impedir o golaço que Martinelli fez aos 40’ do primeiro tempo. Golaço.
Quatro minutos após o gol, em uma falta boba Martinelli toma seu terceiro cartão amarelo da competição, ficando impedido de jogar a próxima partida. Uma tragédia. Esse cartão e o do Freytes, que toma o terceiro coincidentemente logo antes do gol, sairão caros para o Flu.
Nos acréscimos do primeiro tempo o juiz marca um penal, mas anula após revisão do VAR. Jogadores do Fluminense vão pro vestiário fazendo sinal da cruz. O jogo não estava tão simples.
Os árabes voltam implacáveis do intervalo, e foi questão de tempo até tomarmos o empate. Atuação memorável de Bono, goleiro da seleção marroquina. Ainda assim, não foi páreo pra estrela de Hércules. Ele de novo. Pelo visto gosta de fazer o segundo gol. Samuel Xavier, que chamava a torcida pro jogo, pede pra ser substituído, sentindo. Dito isso, prevalecemos.
Ganhamos da equipe que eliminou o Manchester City, velho inimigo, representante dos petrodólares no front britânico. Mas nosso algoz veio de uma cidade mais ao sul da Inglaterra, veio da capital.
##########
Afirmo com tranquilidade que o Chelsea foi eficaz, não genial. Em um campeonato que sua postura mudou da fase de grupos para as eliminatórias, as chances mais perigosas vieram justamente de João Pedro, contratado na “janela extraordinária” por 55 milhões de libras, ou mais de 410 milhões de reais. Preço que precisaram pagar para superar o clube formador do atleta. O que não entra na planilha foi o preço mais alto, pago pelo Fluminense: uma frustração inédita, esquisita, vinda de um lugar que tantos disseram que nunca chegaríamos.
Era visível do minuto 0 a falta da espinha dorsal para a saída de bola, Martinelli seu nome. Fizemos um primeiro tempo apático, com um Fluminense encolhido, preso ao esquema com três zagueiros que nos trouxe até aqui, só que dessa vez como se esperasse por um milagre
A volta do intervalo sem substituições foi a confirmação de que o mesmo ritmo enxoxo seguiria orquestrando a agonia. E seguiu. O Chelsea ter jogado mais não impediu que o Fluminense tivesse boas chances de sair vitorioso. Coisa que não aconteceu com a eliminação dos outros brasileiros. Logo depois de grande chance do Everaldo, segundo gol dos caras (JP de novo).
Pedro Neto tomou conta do coitado do Guga. Cole Palmer desaparecido, irrelevante em toda a partida. Se jogássemos como jogamos qualquer um dos jogos até aqui, teríamos toda a condição de ganhar. O problema é que o “se” existe tanto quanto a vontade da mídia em ver o Fluminense se dar bem.
#######
Tentando não dar espaço pra melancolia, Thiago Silva não deixa de repetir no vestiário em Nova Jersei que está extremamente orgulhoso de cada um da equipe, dos funcionários, do departamento técnico e médico. Soubemos competir.
– Vocês são foda. Se preparem que a cobrança vai ser maior. Vocês mostraram que, quando vocês querem, vocês são foda. Parabéns pra todo mundo.
Fechou Renato, lembrando que temos uma dura temporada pela frente com grandes coisas no forno. Copa do Brasil, Brasileirão e Sul-Americana. Para termos os três? Precisamos de mais elenco, precisamos repor peças quando necessário (como não conseguimos fazer). A pedra fundamental nós temos, a união nós temos, o sangue do encarnado temos, e muito.
Nós fomos para a Copa do Mundo de Clubes enormes, voltamos ainda maiores, querendo ainda mais. E se depender de nós, estaremos presentes na próxima edição, em 2029
Apesar da campanha heroica, o último jogo é retrato do que virou o futebol mundial. Brasileiro eliminado por jóia da base que deixou o clube aos 17 anos. Simples assim. É um sequestro de jovens talentos disfarçado de oportunidade. A proposta vem armada com cifras que fazem qualquer escolha parecer obrigação, e o sonho de uma vida melhor vira refém da realidade do mercado. Em troca, suas consequências resultando nos vexames que a seleção brasileira passa. Eles tem o que tritura a essência do nosso futebol e quanto botam a máquina pra rodar, o brasileiro bate palma.
Nessa campanha histórica eliminamos times da moda, mostramos força, colocamos o FFC na mesma prateleira de times que desde 2019 chegam à final da Champions League. Com essa visibilidade, a tendência é a melhora em contratos de patrocínio, além do dinheiro de premiação que vai muito bem, obrigado. Honramos 122 anos de camisa e sabemos disso. Continuemos.
O mundo já sabia desde 1952, mas fizemos questão de relembrar um pouquinho mais o que são as nossas três cores. Deixamos um legado exemplar. Olhando para o ponto de partida que cada semifinalista teve, e então para a altura do que conquistamos, o Fluminense foi mais longe que qualquer um.
Orgulhamos o nosso torcedor. Orgulhamos o Brasil. E lembramos o mundo que fidalguia ainda existe no futebol.
E que ela veste verde, branco e grená.