PUBLICADO ORIGINALMENTE EM 30/11/2021
Um silêncio de morte e vida, muita vida. Os heróis não morrem, aliás. Falamos deles há décadas e décadas. Pode ser Assis, pode ser Carlos Alberto Torres, pode ser Félix ou Didi ou Escurinho, pode ser Pinheiro, Romeu, Rodrigues.
Zezé.
Eu tenho dez anos de idade, um time de botões brancos e procuro pela mão de meu pai na arquibancada misteriosa, mas não sinto medo. Eu sou do lugar. Algo me diz.
[A trave que a tudo vê, contada por Sérgio Sant’anna, está no lugar de sempre mas não repara em mim. Ela já dormiu
Didi já cobrou suas faltas e foi embora. Edinho já cobrou suas faltas e também foi embora. Onde foi parar o gigantesco Welfare?
Telê correu demais por aqui. Escurinho também. Paulinho.
Eu estou na arquibancada alta e procuro pelo pó de arroz, que é meu oxigênio, meu espinafre, mas não há ninguém comigo.
[Eu tenho 26 anos e estou nas cadeiras azuis do Maracanã com meu amigo Flávio O Assustado, esperando um jogo com 600 torcedores
Nesta grama que brilha à luz do luar, quantos grandes êxitos não tivemos?
Desde os tempos de Chico Guanabara, das moças torcendo os lenços, do burro Faísca cuidando do palco, do super escudo na camisa branca de Marcos Carneiro de Mendonça, o primeiro gallant.
[Coelho Neto e Lima Barreto trocando porrada literária de mão cheia
Ali perto também passavam Dulce Thompson, Regina Uchoa, Marquinhos, Sartori, Madruga. Muito tempo antes, Guilherme Paraense. Bernard? Sim. Bernardinho também.
Eu tenho dez anos de idade, um time de botões brancos, iguaizinhos ao uniforme de 1980, com Edinho à frente. Cláudio Adão jogava demais. Gilberto. O jovem Deley.
Zezé.
O nosso tempo no futebol é outro. Crescemos, engordamos, sentimos as rugas, as dores nas articulações nada memória está ali, intocável, belíssima. Tricolores de 90 anos ainda se lembram do timaço dos anos 1930. Sessentões ficaram enlouquecidos com a Máquina. Cinquentões, com a tropa de Assis. Os jovens adultos pularam com Deco, Cavalieri e Fred.
[Todos eles pisaram nesta grama que tem a vocação da história
Eu tenho 19 anos e venho de tarde para os treinos uma vez por semana, quando a faculdade dá folga. Jorge Pinto está sempre gritando aqui, depois vamos para o Gordon da Santa Úrsula e traçamos um Diabólico.
Por aqui passaram Gentil Cardoso, Ondino Viera, Zezé Moreira, Zagallo, Evaristo, Parreira, tanta gente.
A arquibancada continua muito silenciosa, mas ela parece esconder cem anos de gritos, abraços e felicidade. Vaias também, estamos na Terra e não em outro planeta.
Agora podia ser quinze para as cinco de um grande clássico, prestes a explodir uma nuvem de pó de arroz que vai fazer tudo sumir e nos envolver por minutos, até que se dissipa e então vemos o Fluminense em campo. Gritamos Neeeeeennnseeee!
Eu tenho um radinho de pilha em minhas mãos, velhinho, que ainda funciona. Se eu ligá-lo, tenho certeza de que o Fluminense entrará em campo mesmo no escuro para marcar um grande gol.
Perto daqui, depois do túnel, no Catumbi você pode ver outdoors com propagandas de Pepsi-Cola, Crush e Grapete.
Aqui do lado tem um palácio lindo.
Quantas pessoas viveram neste lugar? E sonharam em estar aqui? Eis o coração do football brasileiro, onde tudo nasceu: a Seleção, a torcida, o chefe de torcida, a administração, a elegância, o sucesso popular – Pixinguinha e seus Oito Batutas, que até hoje ecoam na música brasileira com autoridade.
Eu tenho dez anos de idade e venho aqui com meu pai para ver partidas dos juvenis aos domingos de manhã. Depois caminhamos por quilômetros até Copacabana, não nos sentimos cansados e, se ele disser “Vamos ao jogo” eu ficarei elétrico, porque é o que eu mais espero ouvir a semana inteira.
[Veludo, Didi, Escurinho, Jair Marinho, Altair, Denílson, Carlos Alberto Torres
Eu tenho cinquenta e três anos, o fim está muito mais próximo do começo, não tenho direito a um aperto de mão na arquibancada deserta e charmosa das Laranjeiras, mas tenho a impressão de que já vivi coisas belas.
“Se quiseres saber o futuro do Fluminense, olhai para o seu passado”.
Virá uma longa noite, mas amanhã já é o futuro. Ele precisa ser construído.
[Se eu for embora agora, vou torcer para passar um 456 logo, que me deixa perto do Sumol, a três quadras de casa