Quando Gallotti abraçou Pablo (por Paulo-Roberto Andel)

Sentados no berço esplêndido das arquibancadas do centenário Estádio das Laranjeiras, Pablo Amaral e Eduardo Gallotti começam a conversar sobre o clube do coração, enquanto olham para o campo que ficou os alicerces do futebol brasileiro. Não há treino ou qualquer outra atividade dos jogadores profissionais, mas apenas o silêncio e a brisa de um lugar que possui o aroma definitivo do esporte mais apaixonante do mundo. Só foram lá para se sentirem mais perto do Flu num dia de folga, olhando para o campo e sonhando com grandes lembranças de suas vidas.

No alto, o Cristo. À direita, o vaivém discreto de uma tarde de férias na rua Pinheiro Machado. Em frente, as veteranas sociais que já presenciaram mil histórias mais o gramado, o mesmo que já recebeu até Oscar Niemeyer em passes no meio de campo, sem contar Welfare, Laís, Preguinho, Batatais, Bigode, Pinheiro e uma esquadrilha de craques multicampeões, numa longa estrada que desembocou até bem pouco tempo atrás.

O Gallotti deu uma sorte imensa. Imagine a fuzarca na escola com o Fluminense de Rivellino, Paulo Cezar, Carlos Alberto Terres e uma garotada da pesada: Pintinho, Cléber e Edinho. Um time eterno, uma paixão, uma força e uma presença que ainda está entre nós: a Máquina. A cada ano que passa, ela aumenta sua importância. E o Pablo nasceu no ano da mocidade independente do Fluminense, 1980, o time cheio de garotos que treinavam ali mesmo nas Laranjeiras: Deley, Mário, Robertinho e Zezé. Futebol mesmo, Pablo foi entender anos depois, mas imagine você ter um super herói como ídolo? Cada um tem o Super Ézio que merece. E o gol de barriga? Nem é preciso falar.

Quando começam a falar de suas lembranças tricolores, os dois homens do samba fazem do centenário estádio a Praça da Apoteose, porque o Fluminense é o próprio samba desde sempre. Basta falar de Cartola, de Wilson Moreira, de Délcio Carvalho, Marquinhos de Oswaldo Cruz, Didu Nogueira, de Seu Noca, de Cristina e tanta gente mais que forma o grande exército dos bambas. Três cores de vitória na Sapucaí. Galocantô às quatro da manhã.

[Laranjeiras tem tanto peso e história que nós tivemos Nelson Rodrigues no teatro das crônicas imortais e, só de onda, Sérgio Sant’Anna para viver e contar histórias de arrepiar, feito aquela da trave que a tudo via em 1955, dia e noite.

Já adultos, o ainda jovem Galotti e o muito jovem Pablo encararam uma barra pesada: rebaixamento, rebaixamento, destruição do Flu nas manchetes, humilhação da torcida, tempos de luta. Não tinha super herói, não tinha Máquina, havia só a luta pela sobrevivência. Só que o Fluminense é muito maior do que todos os seus detratores, traidores e maus gestores juntos – por isso, bateu a porta do umbral, se mandou, subiu e foi até os céus, se limite houver.

[Gallotti e Pablo, dois garotos do Fluminense com suas cordas de samba, suas veias de três matizes e uma paixão que só entende quem já se sentiu nas nuvens no meio do pó de arroz

“A gente tinha que fazer uma roda de samba só de Fluminense, um dia inteiro, só com sambas inéditos para o nosso Tricolor”.

“Rapaz, aí a gente vai ter que tocar uma semana inteira!”

E riem, riem.

[É a Lapa, a Lapa, tricolor desde os tempos de Millôr Fernandes

Então trocam um abraço de amigos aos pés do gramado silencioso e elegante que espalhou o amor pelo futebol nesse país. Ninguém os vê, a tarde de Laranjeiras e vazia pelas circunstâncias, mas basta um amigo pra gente se sentir vivo.

Toca o telefone, Pablo diz que está na hora de ir embora, porque tem uma pelada pra jogar mais tarde. Gallotti sorri. Os dois resolvem curtir passos lentos na arquibancada das Laranjeiras, que já recebeu tanta e tanta gente. E riem.

Quando passam pelo portão cinza da Pinheiro Machado, ficam para trás um enorme escudão pintado, uma cena de cinema e a certeza do reencontro em breve. Mais jovem, Pablo vai embora mais rápido. Perto do eterno muro grená, recentemente adornado com a faixa tricolor, Gallotti espia o clube, o sonho, a paixão que alimenta todas as suas apresentações musicais com o hino – e muitas vezes a camisa – do Fluminense, sorri feliz e toma o caminho de volta para casa.

[Ali tem Telê, tem Marcos Carneiro de Mendonça, tem Didi, Castilho, Washington e Assis. Ali tem Escurinho e Zezé Moreira. Ali tem o mundo, é o Fluminense que serve de chama para os nossos corações

Qualquer dia eles se encontram de novo, porque o samba e o Fluminense têm a vocação da eternidade.

Em memória de Eduardo Gallotti e tributo a Pablo Amaral.

A Lapa de ontem (Millôr Fernandes)

“Entre os 13 e os 20 anos vivi no centro do mundo. No Rio, capital do Brasil, que ia do belo edifício art noveau do Liceu de Artes e Ofícios (por trás ficava O Globo, um jornalzinho), onde eu estudava, ao Largo da Carioca, junto da Galeria Cruzeiro dos enormes bares Nacional e da Brahma (no enorme Hotel Avenida, dentro do qual passavam bondes) e dos cafés Nice e Belas Artes, centro da boemia musical, profissional, amadora e roubadora. Em frente, o teatro Fênix, onde, certa noite, um cantor argentino, sob luzes azuladas, me deixou encantado: Juan Daniel, pai de Daniel Filho. Em frente também, o Hotel Central, onde “paravam” políticos gaúchos, o mais famoso deles o machão-sem-medo Flores da Cunha que, com ou sem motivo, puxava seu revólver. Um pouco adiante, lá estavam o Municipal, a Câmara e o Senado, e o Palácio Monroe, que a grosseria-ciúme do “Presidente” Geisel demoliu. Por quê? Em volta, em toda parte, cinemas, cinemas, cinemas. A Cinelândia. Aí, rapazinho, convivi com alguns dos que se tornariam, ou já eram, os maiores nomes da música popular brasileira – entre eles Lamartine, Orestes e Nássara, também caricaturista genial, meu amigo até morrer. Ali eu andava, vendo as confeitarias luxuosas (ao fundo cresciam os bancos, que as substituiriam e destruiriam), os cinemas chiquérrimos (entrar sem gravata, nem pensar!), o Passeio Público – e a Lapa!”