Quando eu corri do “caixão” do presidente (por Paulo-Roberto Andel)

flu corinthians

Acaba de falecer o presidente Sylvio Kelly dos Santos, o pai de Xerém, um dos mitos dos esportes aquáticos das Laranjeiras, benemérito do clube e grande advogado. Uma perda significativa para o Fluminense e o esporte brasileiro.

Descontadas a dor e o lamento diante do nosso permanente caminho inevitável para a morte, logo me vem à mente uma história engraçada, que explica o que era aquele time que eu vivi intensamente no começo da adolescência. Envolve crítica, atitude, mas é muito diferente de hoje, com vazamentos, vendilhões e ética seletiva.

Meio do ano de 1982, o Brasil com os olhos vidrados na Copa da Espanha, aí mesmo tempo em que por aqui era disputado o Torneio dos Campeões, uma competição nacional que era na prática um mini campeonato brasileiro, que acabaria sendo vencido pelo querido America.

O Flu não vinha nada bem. Sem grana, com o time esfacelado, numa campanha ruim, jogadores até citados no escândalo conhecido como “Máfia da Loteria”. Pela competição já citada, tínhamos um compromisso num sábado à noite contra o Corinthians no Maracanã, vazio de doer.

Nesse tempo, eu tinha uma tática para economizar minha mesada e poder ir a todos os jogos possíveis do Flu: revezava a presença nas arquibancadas com a geral. Foi o que aconteceu naquela noite de clássico.

A turma da Fôrça Flu, que era da fuzarca, organizou um protesto antes da partida. Eles não eram fáceis: desafiavam as convenções, cobravam um grande Fluminense e metiam a cara em plena época da ditadura que assolava o Brasil. Bom, eu sabia que ia ter alguma manifestação no Maracanã, mas imediatamente arregalei os olhos e saí correndo quando o pessoal entrou pelo acesso da geral que ficava à direita das cabines de rádio.

O motivo? Um enorme caixão e um velório simbólico do nosso então presidente. Deram uma volta olímpica em torno do gramado, enquanto eu corria deles e me colocava do outro lado do campo: nunca tinha ido a um velório, quanto mais visto um caixão de perto. Confesso que fiquei aliviado quando eles saíram da geral. Acabou sendo um happening político: até o Doutor Horta estava presente.

Terminado o protesto funéreo, veio o jogo. Mal, o Flu perdeu de novo, um a zero. A Fôrça gritou tudo que podia, xingou, esperneou. A fase era difícil. Mas em futebol, o fracasso e o sucesso costumam se esbarrar em cada esquina e, um ano depois, o Fluminense teria uma das grandes equipes de sua história, colocando o rival da Gávea no chinelo. Os litigantes de outrora abraçaram-se como nunca, mas a Fôrça nunca deixou de criticar quando era necessário. Uma das nossas épocas de grande pujança esportiva nasceu de um período turvo demais – e de muita cobrança também. O Doutor Sylvio terminou seu mandato presidencial com um grande título carioca em 1983.

Hoje, o verdadeiro velório não terá nada de divertido, mas de saudoso e respeitoso. Trinta e tantos anos passam rápido demais. Ao Doutor Sylvio, meu apreço e sentimento. Uma saudade enorme de um Fluminense que não escondia suas mazelas debaixo do tapete, longe dessa história atual de ódios, conversas vazadas, edições da história e falta de respeito com a inteligência alheia. A Fôrça é uma lembrança eterna, o MR21 é seu sucessor direto noutra esfera. O Zezé sumiu, o Gonzalez continua felizmente indestrutível. Doutor Sylvio plantou a semente de Xerém que há de atravessar séculos. São coisas que só se pode entender depois.

Eu queria ser ainda aquele garoto de olhos arregalados na geral do Maracanã em 1982. Éramos mais simples, divertidos e sinceramente humanos. Ah, tempo que escorre e nos faz perceber o tempo inteiro a indecifrável velocidade da vida. Agora os velórios são comuns e o peito, um vazio enorme.

Contudo, o tempo só mostra que o amor jamais será derrotado pelo ódio.

Panorama Tricolor

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Imagem: rap