O hospital em três cores (por Eric Costa)

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– Cheguei, capeta.

A mensagem mental vem ao escutar a buzina do carro de Camila, a irmã que a faculdade  e a vida me deram. Irmandade que faz até de “capeta” uma palavra carinhosa.

Na tarde de domingo, martelavam várias ideias ao mesmo tempo.  Para nós, esse era o primeiro entardecer dominical nos corredores do hospital quase seis anos e um dos últimos desta jornada. Debutava ali outra situação: um esperado clássico, transmitido na tv aberta, e eu enfiado como abelha nas colmeias de prontuários. Eis o desenho. A realidade, talvez.

Porém, sem sorte, meus amigos, não se compra sequer um Chicabon. A iguaria é tão encarnada em nosso cotidiano que há décadas foi citada celebremente por Nelson Rodrigues.

Não se faz um hospital com doces, mas doce é o que se torna um plantão tranquilo. Não que este fosse exatamente assim por número, mas o Gravatinha, que sequer teve trabalho no Engenhão, tratou de dar à história de cada paciente naquele ludovicense entardecer o tempo exato. Para o cuidar. Para o êxtase também.

Ao mirar a primeira encruzilhada após as escadas, próximo ao balcão da enfermagem, havia o que desde o meio da semana gostaria que assim estivesse: a tv de nossos pacientes – solenemente maior que qualquer outra que já possui – sintonizava na Globo e já exibia camisas tricolores e alvinegras em desfile antes de a bola rolar.

Para cada um dos cinco de nós, já havia seu primeiro paciente. Prontuário, canetas, número do leito e a direção do quarto. Posição estratégica. A poucos metros da TV, ficaria informado.

O calor de São Luís, entretanto, castiga a todos nós e sobretudo aos pacientes. Entidade quase metafísica é o ar-condicionado nestes tempos. A porta precisaria ser fechada e assim foi.

Os muros da mente começavam:

– Calma, Eric. Não vai ter nada nesse comecinho.

Assim quis acreditar. Poderia eu crer pouco que a bóia de salvação do calor por um lado, laçaria meus ouvidos por outro. Cumprimentos, apresentação, conversa, perguntas.

Abstração total. Por minutos, o jogo era detalhe. Até que…

– Que diabos é isso? Gol? – diziam os muros da mente, vozes do interior ou coisa do gênero.

Parecia. Por algum lugar daquele quarto o jato de ar frio passava mais rápido.

Um barulho contínuo, mas que, baixinho, lembrava o agudo grito de gol de Luiz Roberto nas narrações da Globo.

– Meu Deus, gol?? – os muros da mente gritavam.

Era a dita hora dos sinais vitais. Onde estava o aferidor? Aquele que nunca é esquecido, sumiu. Desculpa para caminhar alguns metros e pegá-lo. De relance, pescoço esticado.  Zero a zero.

Vinha, dois minutos depois, o pulso. Sessenta segundos, quase lá, como manda o manu…

– Gooooooooooooooooo…

– Cacete! Agora não – gritou a voz da consciência, tranquila pois ali já havia conseguido contar o pulso o suficiente. Ora, 59 segundos…

– …ooooooooooooooooooo…

Parado ali fiquei. A qualquer observador, era a estaticidade da contagem do pulso. Essa já tinha passado. A mão, o gesto da contagem estavam ali. A percepção toda aos ouvidos:

– …ooooolll do Flumineeeeenseeeeeeeeeeee!!!!!

Nem um haldol a esta hora me tranquilizaria tanto quanto o fim desse grito. Ufa. Sorriso tímido.

– Caralho, de quem terá sido? – falou uma das vozes da mente. A outra não deixou por menos:

– Pera lá, né?

Dualidade. Paradoxo. A mente é uma verdade dúbia.

Conversa vai, esclarecimento vem, despedida até a próxima visita clínica. O encontro com o paciente – mesmo em meio às pressões externas de vez ou outra ou quase sempre – são o núcleo desta jornada. Porta aberta, primeiro pé no corred…

– Liiiinda jogada, Sornoza pro Henrique Douraaaaado. Gooooooooooooooooooooooooooollll!

O “puta que pariu” de quase sempre virou sorriso tímido e braços para o alto e sem som. Os olhos já comemoravam.

– O doutor tá feliz! – disse a paciente na cadeira próxima à TV.

– Eu tô um olho aqui e outro aí, senhora. – Afastava o jaleco e mostrava o escudo no peito.

– O negócio tá bom pra nós – disse ela.

– Tricolor também??

– Sim, doutor!

Mesmo tendo cada tricolor sua própria irradiação específica, a sombra e luz do pequeno dia-a-dia por vezes não nos permitem o reconhecimento. E a senhora, fiel, lá permaneceu até  o apito final.

O segundo paciente, de história tão breve quanto interessante, permitiria que o tempo de passar a limpo sua trajetória fosse feito – intencionalmente – em pé, ao desconforto da dor nas pernas e ao conforto de mirar a TV ao subir das rotações de jogo.

E foi em altíssima velocidade – de olhar e de jogada em campo – que se fez o terceiro gol. Sucedida, inclusive, de um braço erguido e um “Acabou!!!!” mais alto do que deveria, dissipado ao eco dos corredores quase inabitados.

Abdicação. Divisão. Ser a escolha sem deixar de ser si próprio. A estrada é sinuosa. Os plantões? Muitos. Uma infinita highway, eu diria.

Um caminhar, porém, não solitário . O cansaço pode atormentar. A ansiedade pode corroer.

Derrotar jamais. Os corredores são escuros, mas o Fluminense e os amigos os incandescem.

Pensei nisto aos 45. Quatro foram dados de acréscimo. Nestes,dali de perto levantam um paciente e sua acompanhante. Haviam assistido ao jogo. Passos lentos o levam à janela.

“Quantos prédios têm ali, papai?”

“Um, dois, três…cinco. Mas eu quero o mar. Eu só vejo o mar”.

O Fluminense para uns. O mar para outros.

Cada um codifica quase tudo aquilo que vêm às retinas. Objetividade.

Abençoados aqueles que fazem de suas grandes guerras uma paisagem, e da subjetividade sua lente fotocromática, e não se privam de enxergar aquilo que os move.

Quatro minutos de acréscimo. Quatro minutos de abstração.

Três gols na rede.

Dois olhos no prontuário. Dois ouvidos ao jogo.

Uma abelha fora da colmeia.

Um escudo no peito.

2017 sonhos.

Saudações tricolores.

Panorama Tricolor

@PanoramaTri @ericmcosta

Imagem: eric