O caso Luiz Henrique, o modelo e a política (por Marcelo Savioli)

Amigos, amigas, eu já vi muita gente tentando explicar a venda de Luiz Henrique, e eu louvo essa iniciativa. Nenhum fato é isolado ou estanque da conjuntura. A questão que se nos impõe é fazer a leitura aprofundada da conjuntura, porque a leitura rasa pode levar aos mesmos equívocos, ou até piores, que leitura alguma, na medida em que deslocam a opinião como produto do senso comum para uma opinião ruim revestida de certa autoridade técnica.

Devemos, para tentar fazer uma análise minimamente consistente, partir de um método. Nesse caso, eu gostaria de fechar e depois ir abrindo lenta e reveladoramente a lente. No caminho, talvez os amigos me peguem em algumas contradições, mas eu peço paciência, porque há um sentido para tudo isso, que talvez nos ajude a entender a complexidade do que aparentemente é só mais uma venda ruim do Fluminense para tapar buraco no fluxo de caixa.

Vamos partir da visão de dentro para fora, sem atribuir, pelo menos por ora, conceitos de valor à análise. O Fluminense inicia o ano de 2022 com uma previsão orçamentária que lhe obriga, dentro da ótica de planejamento adotada, a fazer uma receita com transferência de atletas de no mínimo R$ 90 milhões. O que nos defronta com um possível primeiro erro de análise. Por que? Porque receita com transferência de atletas não é o mesmo que venda de atletas.

A contabilidade do Fluminense funciona com o regime de caixa. Isso quer dizer que as receitas só são computadas quando o dinheiro efetivamente entra. Isso quer dizer que podemos ter resíduos de vendas parceladas dos anos anteriores. Eu digo que podemos porque só é possível averiguar a existência e o volume desses resíduos com a publicação do balanço anual de 2021, o que não aconteceu ainda, portanto estamos analisando, de certa forma, no escuro.

Em outras palavras, talvez não tenhamos que fazer o mínimo de R$ 90 milhões em vendas, embora alguns veículos já tenham se arvorado em anunciar que o Fluminense precisa fazer mais duas vendas ainda para cumprir a meta. Estou salientando esse aspecto da situação só para mostrar como é necessário termos certo comedimento na hora de degustar o que nos chega com o status de informação.

De qualquer forma, a explicação de que o Fluminense tinha que vender alguém para colocar os salários novamente em dia me parece óbvia. Pois se você precisa dessa receita para fazer frente às suas obrigações e elas não acontecem, naturalmente suas obrigações ficarão em aberto. Qualquer um de nós sabe que o Fluminense lastreia parte importante de suas despesas em venda de direitos econômicos de atletas.

O que quase 100% da opinião pública questiona não é a venda em si, mas o valor pelo qual o jogador foi vendido, o que é um acerto, em parte, e um grande erro se nos aprofundarmos na análise, mas vamos, por ora, ficar no acerto. Não precisamos viajar muito no tempo para concluirmos que se trata de um péssimo negócio. Basta ver Richarlison, que saiu por um preço e dois anos depois foi revendido pelo quádruplo. Que houvesse sido revendido pelo dobro, ainda assim seria um mau negócio. A possibilidade de que aconteça o mesmo com Luiz Henrique é grande.

Muitos questionam o momento escolhido para se fazer a venda, quando temos um ano promissor pela frente e a janela europeia no meio do ano. Esse é um aspecto muito importante, sobre o qual não ouvi ninguém falar. Em situação de normalidade, eu chamaria essa escolha de manobra para enganar trouxas. Porém, devo chamar atenção das amigas e amigos de que não vivemos uma situação de normalidade no mundo.

A Europa vive hoje uma gerra que envolve grande parte dos seus países. Não é só a Rússia, a Ucrânia, as repúblicas insubmissas e a Bielorrússia. Todos os países que fazem parte da OTAN estão envolvidos nessa guerra. Sendo que o principal mercado futebolístico europeu, que é a Inglaterra, está metida até o último fio de cabelo nisso. As retaliações econômicas promovidas pela OTAN contra a Rússia podem gerar efeitos devastadores sobre a economia global, principalmente sobre a Europa.

É nesse clima de incertezas que nós vamos esperar pela janela europeia para fazer receitas com transferências de atletas?

Amigos, amigas, eu não sei se a diretoria do Fluminense fez essa análise, que me parece sensata. O que eu sei é que, com base nela, eu faria essa venda como movimento estratégico face à conjuntura que se nos impõe. Com futuro incerto, aproveitar uma oportunidade de abastecer o caixa é uma estratégia quase que obrigatória, que visa blindar o clube contra eventuais tempestades que se formam no horizonte.

Eu avisei que haveria contradições nessa análise, que são até saudáveis quando tratamos de matéria tão complexa, mas não me atirem aos crocodilos ainda. Tem um outro aspecto que precisa ser colocado, que é o fato de Luiz Henrique ser substituível. Não, não estou dizendo que teremos um jogador à altura de substituí-lo. Esse seria John Arias, mas se Arias substitui Luiz Henrique, quem substitui Arias?

Eu estou falando que sua saída pode ser atenuada com uma mudança de esquema tático, o que nos remete às atuações soberbas do nosso Time B, atuando no 4-4-2, que seria muito beneficiado com um eventual retorno de Michel Araújo. Vamos, todavia, deixar essa questão para ser analisada posteriormente, para que não estendamos tanto esse artigo. Apenas adianto que, do ponto de vista tático, seriam mais penosas as saídas de André ou Nino.

O que nos leva a ampliar mais um pouco a lente para nos debruçarmos sobre a política que nos leva a essa situação de, em pleno 2022, ainda sermos obrigados a vender jogadores para cumprirmos com nossas obrigações de curto prazo. Não fosse isso, não estaríamos falando sobre a necessidade de vender Luiz Henrique, tampouco eu estaria, em parte, defendendo essa venda estapafúrdia e lesiva aos interesses do Fluminense.

Vi um depoimento do virtual candidato à presidência do Fluminense, meu xará Marcelo Souto, que me chamou atenção, quando o mesmo salienta o que chama de “modus operandi”, que eu já algumas vezes denunciei por aqui. Endossando sua tese, lembro-me de quando vi a notícia de que o Real Bétis fizera uma oferta de 7 milhões de euros por Luiz Henrique, recusada pelo Fluminense, logo vislumbrei o que agora está acontecendo. É, na opinião de Souto, um jogo de cena em que se desvaloriza a mercadoria a partir da oferta para, no desdobramento da manobra, se anunciar a venda por um valor maior, embora igualmente ignóbil. O que temos, na verdade, é uma venda por 9 milhões de euros, que pode, com base em uma política de bônus, se transformar em ainda inaceitáveis 13 milhões.

É aí que nós entramos na política. Uma coisa é eu defender a venda de Richarlison, como defendi, quando o Fluminense tinha três meses de salários atrasados, correndo o risco de perder parte do seu elenco na Justiça. Uma coisa é eu defender, com ressalvas, a venda de Luiz Henrique como medida de defesa financeira do clube no curto prazo. Outra coisa é defender uma política que, pelo que indicam todas as evidências, nos mantém reféns e tenta justificar os maus negócios, que são a política, em si, e não sua consequência.

Se não atacarmos por aí, toda a gritaria, toda a indignação, será embalde. Sabem por que? Porque eu vejo muita gente vociferando contra o Mário, dizendo que ele tem que entender que não é o dono do clube, e não é. Porém, Mário foi eleito presidente do Fluminense, um cargo que lhe confere poderes quase que imperiais, ao qual chegou com o voto dos sócios. Os mesmos poderes que permitiram que Peter Siemsen governasse o Fluminense como um ditador por três anos.

Precisamos, portanto, romper com essa política, independentemente dos resultados esportivos que venhamos a obter esse ano, que acredito que virão, mesmo sem Luiz Henrique. Mais que isso, precisamos romper com o modelo amador, que permite que esse tipo de política se perpetue ano após ano, que nos levará, no médio prazo, a uma situação de ostracismo esportivo, mesmo que os títulos venham agora.

Eu acho que já falei aqui que, independente do modelo adotado, qualquer clube brasileiro que queira se posicionar como protagonista, precisa erguer um tripé constituído por: organização empresarial, gestão profissional e investimentos. O Fluminense, pasmem, não tem nenhum dos pés desse tripé. Estamos, hoje, sustentados sobre um único alicerce, que é Xerém, que sustenta essa política sem que as consequências dela nos atinjam, que pode nos levar a um ano esportivamente formidável, mas que corre o risco de em algum momento atingir seu teto e permitir que sejamos tragados para o abismo, sem amortizar a dívida e sem termos ativos de valor.

Precisamos aproveitar o momento positivo para mudar tudo isso. A SAF é a solução? Eu acho que tem que ser debatida, não olhada como panaceia. Acima de tudo, temos que definir visão de futuro e objetivos para depois nos aventurarmos nas estratégias.

Eu vou parar por aqui, acho que já dei meu recado. Quarta-feira é coração na boca e mente focada na vitória.

Saudações Tricolores!

2 Comments

  1. Boa noite, Savioli !
    Acredito que o atleta já estava vendido e isto só seria divulgado quando a janela europeia abrisse. No entanto, após a última exibição do Luiz Henrique contra o Olímpia, a diretoria viu que o jogador iria se valorizar demais nos próximos jogos, e não poderia ser vendido por este valor, ou seja, foram forçados a divulgarem a venda.

  2. …Olá Savioli, boa noite. Sua analise dos acontecimentos sobre a venda do Luiz Henrique estão de acordo com o meu pensamento! A forma açodada como alguns estão analisando a venda, nunca levam em conta alguns aspectos que você considerou. Acho que o valor foi baixo para o nível do jogador, porém, suas considerações sobre a condição mundial, que acredito foram levadas em conta pela diretoria, podem atenuar a péssima venda. Mas, concordo plenamente que a diretoria quando fez o planejamento financeiro para o ano, contou muito, como popularmente se diz, “com o ovo no c@ da galinha”. Uma cartada…

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