O abstrato e o concreto (por Mauro Jácome)


Nesse sábado estava em viagem. No hotel não havia TV a Cabo, portanto, o jogo contra o Náutico seria no radinho.

Voltava no tempo, à minha infância/adolescência, aos tempos em que jogo na TV era só aos domingos, às 17 horas, e clássicos somente. Anos depois, às quartas-feiras também, mas era um grande contra um pequeno. Época de rodadas duplas no Maracanã e a TV transmitia o jogo das 9. Sorte quando, num caso ou no outro, o jogo era do Fluminense. Caso contrário, radinho. Waldyr Amaral, Jorge Cury, Antônio Porto, Sérgio Moraes, Dolacey Carmargo, João Saldanha, Ruy Porto, Mario Vanna, Denni Menezes, Washington Rodrigues, José Carlos Araújo. Bons tempos, Caldeira! Quando escrevi aqui, lembrei-me de sua excelente e, mais, pertinente coluna “O jornalismo esportivo brasileiro vale a pena? (por Marcus Vinicius Caldeira)”.

O futebol para mim era mais imaginário do que com imagens. Se o jogo do Fluminense era à noite, bom, o rádio pegava razoavelmente.

– Lá vem a patota tricolor; Rivelino, a Patada Atômica, faz um lançamento espetacular para Gil; arranca o Búfalo Gil, dribla para den.. schschschschschschchchchchch…

Sai a voz embargada de Waldyr Amaral e entra o chiado. 10, 15, 30 segundos.

– Dova, Dova; 9 é a camisa dele. Individuo competente o Doval. Estão desfraldas as bandeiras tricolores, Choveu na horta do Fluminense. Agoooooooora, Fluzão 1, Fulano, zero. Mario Vianna…

– Goool legal. Cadê o eco? goooooooooooooooooooooooooool legalllllllllllllllll.

Era assim. Até hoje dá arrepios quando relembro. Essa volta no tempo, com a expectativa de acompanhar pelo rádio, deixou-me agoniado. Já estou desacostumado de ouvir sem ver, só imaginar. Não dispenso o rádio, mas de olho na TV. A ansiedade pré-jogo é a mesma, rádio ou TV, mas o espírito muda quando a bola rola. Por falar em bola, no rádio é toda branca, sem marcas; na TV, enfeitada, colorida, quase um arco-íris.

– Lá vai o Fluminense em busca do gol – diz o rádio.

Aperta no início. É o que entendo pela narração. O jogo é entrecortado pela propaganda. Wellington Nem tenta, Fred chuta.

– O que diz aí no twitter? – um pergunta.

– O “Fluzão2012” diz que o Fluminense vai ganhar de 2 x 0 e que ele está amarradão na nossa rádio – o outro responde.

Deco faz um lançamento, a defesa corta.

– O “Criptonita” diz que não perde um jogo aqui…

– O “PobreCoitado” está secando o Fluminense, diz que vai dar Náutico.

E o jogo? Nada de jogo.

– Como está o Fluminense? – pergunta o narrador.

– O Fluminense está pressionando em busca do primeiro gol e o “Fred vai te pegar” diz que o Flu vai ganhar e que adora nossa rádio.

Só isso? O comentarista não pode perder tempo com o jogo-jogado, o twitter é a estrela “em campo”. Eram passados 20 minutos, mas se espremesse a transmissão, mal daria 5 minutos de narração. A minha imaginação não conseguia ver um campo verde, 22 jogadores. Eu “via” um passarinho azul despejando frases estéreis. Um passe do Deco e 5 tweets, um chute, 5 tweets, um comentário, 5 tweets…

Essa rádio não dá. Tecnologia sim, mas jogo é jogo. Parecia que estavam transmitindo de uma Lan-House…

Queria ouvir e imaginar o jogo. Queria me irritar com o time, não com os tweets. Queria ouvir o narrador acelerar quando o Fluminense chegava perto da área do Náutico. Queria ouvir o barulho da torcida ao fundo. Larguei o radinho de ouvido e fui para o carro. Lá, consegui ouvir outras rádios, as rádios mais tradicionais. Agora sim. Ouvia tudo. O Fluminense jogava mal. Queria sentir o time jogando mal…

O time é envolvido pelo Náutico. As imagens do jogo contra o Atlético-GO vêm à mente. De repente, bate um desânimo. Outro tropeço, outro revés. Até imagino o Náutico de rubro-negro partindo em contra-ataques velozes, perigosos. Salvo uma parada para uma rápida propaganda, para o tempo jogado ou para o comentarista falar mal do Fluminense, o jogo corria inteiro. Até sabia quantas vezes o Deco pegava na bola, o Jean saia jogando ou o Thiago Neves errava passes. Quando o Fluminense atacava, o narrador falava o nome do Cavallieri, do Gum, do Bruno, do Jean, do Deco, do Wellington Nem, até à conclusão do Fred. Não falava do Thiago Neves, não porque tivesse chegado um tweet, mas porque ele estava sumido do jogo.

O Náutico ataca, pressiona, perde um gol, dois, três. O desespero aumenta. Não estou vendo, mas imagino. O medo de a derrota se repetir aumenta. Mais um mal resultado e a sorte nos abandonaria. Grêmio e Atlético estão vindo babando.

De repente, confusão na área, bate-rebate, Gedeão, Fred, gol, gooooool; Fred não, Leandro Euzébio. “Goooooooooooooooooooool do Fluminense, do nosso Fluminense…”. O tempo volta. Era assim mesmo. No rádio, é só emoção. Para o ouvinte, não há racionalidade numa transmissão de rádio. Bem que o comentarista tenta, mas não tem como. A falta da imagem real transporta tudo para um plano sem dimensões. Nós mesmos construímos o nosso próprio jogo. Nesse jogo egoísta, quando o time ataca, não há adversários e antecipamos a bola na rede a cada fração de tempo; quando defende, incorporamos algum jogador e salvamos. Assim, o nosso gol é sempre previsto, eu o construí; o deles, uma surpresa, culpa minha, fiz a escolha errada. E foi assim no primeiro gol de sábado. Aquilo que era previsão vira cena na memória. O pouco que descreveram era suficiente para definir as minhas próprias imagens. Pelo vidro do carro eu via o campo, o gol, a comemoração. É como se estivesse lá, ora prevendo, ora acontecendo.

Mal o narrador, o comentarista e o repórter acabam de cumprir todo o ritual daquele primeiro gol, surge outro. Um golaço. Fred pega de primeira, depois que a bola passou de pé em pé. Tudo no fim do primeiro tempo.

Instantaneamente, aquele medo de outra tragédia transformava-se em matemática. Nem escuto mais a transmissão. Absorto nas contas, calculava: agora são cinco pontos, amanhã dá empate e seremos líderes absolutos. Poderiam ser oito se não tivesse tropeçado, mas poderiam ser só dois, se tudo tivesse dado errado. Que momento!

O intervalo no jogo do nosso time é chato. Sempre é chato. No rádio, na TV, na arquibancada. Angústia e ansiedade. Os quinze minutos são horas e horas.

Recomeça o jogo. O Fluminense administra o placar. O Náutico sentiu os dois gols. O Fluminense toca a bola. O Náutico não aproveitou as chances e foi castigado pela força tricolor. Mal escuto o jogo. A matemática não sai mais da cabeça. Cinco pontos. Poderiam ser sete, não fossem aqueles dois gols no fim do jogo em Florianópolis. Que bobeira! O Fluminense administra o jogo. Toca, toca, toca. Abel começa a se preparar para garantir o resultado. Coloca o Marcos Júnior para tentar um contra-ataque e Wagner para poupar o Deco, que voltava depois de longa parada. Também pensa em reforçar a marcação para evitar qualquer surpresa. Os números, os números, cinco pontos. Poderiam ser oito, poderiam ser sete. Entro na onda do comentarista e administro os nervos. Vitória garantida.

Kim, gol. Agora? 38 minutos, faltam sete, mais os tradicionais três, faltam dez. Lá vem pressão. Do Náutico? Nesta fase do campeonato, todo adversário é o Barcelona, todo atacante é o Neymar, todo zagueiro deles é o Thiago Silva, todo goleiro é o Casillas. Meu Deus, mais um tropeço, mais um desespero! Aquilo que poderia ser um largo passo para o campeonato, tornava-se um grande tormento.

Acho que passa dos quarenta, o narrador não fala se são 40, 41, 42. Não marquei o tempo. Quanto falta? Há tempo, o Náutico ataca. O Fluminense não consegue segurar a bola. Administrar o jogo naquele momento significava ganhar a qualquer custo. Quarenta e dois. Finalmente ele fala. Pego o celular e coloco no cronômetro regressivo. Faltam 3 mais 3, 6. Uma eternidade. O Fluminense não vai resistir. Só olho para os números diminuindo. Cada segundo demorava um minuto. Cada minuto, um campeonato. Bola alçada na área do Fluminense.

– Cavallieeeeeeri, Gum salva. Milagre. A bola não entra! Cavallieri espetacular.

Não há coração batendo, há coração espancando. Bate tão forte que a cabeça vibra a cada tranco. O olho não consegue se desviar do cronômetro. Vou desviar, assim anda mais rápido. E se desligar o rádio por uns três minutos? Não desvio o olho, não desligo o rádio. Mais três. Incluo os acréscimos no cronômetro. Patrick entra livre, vai marcar… Eram cinco pontos, mas esse empate com o Náutico, só três. Amanhã também dá empate, só dois. Se der Atlético, nenhum. Outro tropeço. Nem consigo armar a defesa para impedir o gol. Desisto, jogo a toalha. Resigno-me com o empate.

– Na rede, raspa a trave, incrível o gol perdido!

A tensão é tanta, o medo é tanto, que o alívio por um gol perdido emociona. O olho enche…

– Não há tempo para mais nada… – o narrador abaixa a cortina.

Quase que imediatamente o coração bate compassadamente, a mão seca, as imagens da vida real recuperam-se na minha visão.

Enfim, sobrevivi o suficiente para ver o empate lá em Minas e definir minha matemática da semana. São quatro, poderiam ser sete, seis, até nove. Domingo pode ir a sete.

Ainda, sobrevivi para ver o VT e transformar cada uma daquelas emoções abstratas no mundo concreto.

Mauro Jácome

Panorama Tricolor/ FluNews

@PanoramaTri

Contato: Vitor Franklin

Revisão: Rosa Jácome

15 Comments

  1. Ótimo texto.

    parabéns.

    Qdo do dia do jogo contra o Atlético-go, estava em um hotel fazenda em Engenheiro Paulo de Frontim, ou seja, no meio do mato..rádio transmitindo o jogo pegando lá? Sem chances..só emissoras locais e com áudio muito ruim. Internet só tinha um Wi-fi na recepção totalmente instável. Veja vc que mal eu havia chegado com malas e tudo ,com toda a família, para comemora aniversário de um parente da esposa, e eu já queria saber como é que iria poder acompanhar o jogo.

    Mas fui salvo por um espaço no hotel de nome Sala de jogos, espaço enorme e lá no canto uma TV de LCD de 50 polegadas..procurei pelo controle , era uma Sky e liguei : estava lá o PFC funcionando marcando o jogo do Flu x Atlético.

    Eu e mais uns 5 ou 6 tricolores assistimos o jogo,mas em volta de nós uns 10 do contra, maioria flamenguistas, secando geral…se deram bem no final…teve alguns que até depois do jogo, na hora do jantar, foram nos seus respectivos quartos e voltaram com o pano de chão vestidos no corpo…felicidade geral deles,afinal, o maior rival deles no futebol, palavras deles, perdeu.

    esse é o nosso Fluminense.

    Abs.

    1. Obrigado. O hotel em que fiquei estava infestado. Havia momentos em que se viam cinco, seis sujando a paisagem. Neste final de semana, cá estou novamente, mas volto antes do Fla x Flu.

  2. Rádio? Eu não ouço jogo no rádio há séculos. E nem sempre vejo na TV, pois o sufoco que o Flu vem nos fazendo passar é muito grande. Mas, é sempre bom relembrar o tempo em que a transmissão se interrompia e a agonia aumentava. Tinha uma tal de ripa na chulipa, não adianta chorar fulano a nega tá la dentro, pimba na gorduchinha, tá lá no filó, olha o tempo, meu cronômetro marca, nas nuvens, la mano, goooool legal e por aí vai. Eu cheguei a ouvi a Copa de 1958 pelo rádio. A transmissão sumia e quando voltava não se sabia o que acontecera.
    Estamos na era da comunicação e um celular, um note book ou um i-pad resolvem essa angustia de acompanhar o jogo. OPu entaõ apelar para a velha e boa porta do vizinho. Sempre tem um assistindo.

    1. Jorge, se você acha sufoco na TV, nem chegue perto de um rádio. Voltando àqueles tempos ainda, lembro de quando o Fluminense jogava no sábado às três da tarde. Tinha que ouvir em ondas curtas. O botão de sintonia é muito mais sensível em ondas curtas e o som some com muito mais frequência. Tinha um tal de colocar bombril na antena. Já na era da TV, teve aquele Fla x Flu de 84, que o Leandro marcou um gol no finzinho. A bola bateu na trave e nas costas do Paulo Vitor. Joguei um rádio que tinha na parede. Foi pedaços para todos os lados. E o arrependimento? Ainda deu para remontá-lo, mas não era mais o mesmo. Naqueles anos de tricampeonato, após os jogos, gravava em K7 a repetição dos gols.

  3. Mauro, ainda preciso saber porque o Abel tira o ataque quando estamos ganhando o jogo e quer sempre correr o risco de empatarem o jogo. Sempre ele quer entregar o jogo aos adversários. Não entendo a tática dele. Quero muito ser Tetra-Campeão, com autoridade, ou seja, disparado do vice.
    FLUMINENSE ETERNO AMOR!!!!!!

    1. Calma, Luciano! Você está com ideia fixa com relação ao Abel. Outras vezes, concordo que errou nas substituições, mas sábado ele fez certinho. TN pediu para sair e o Deco tinha que ser poupado. Wagner é o substituo natural e o MJ deu a bola do jogo ao Digão. Imagina se faz o terceiro. Hoje estaríamos discutindo uma goleada e não o sufoco e, ainda, tendo que aguentar essa babaquice que virou o pênalti não marcado.

  4. e viva o rádio!
    e me veio a idéia aqui de ver essa tua coluna em áudio, como um podcast, só para ver as suas emoções na mesma mídia. que achas?

    1. Belíssimo texto, Jácome! Ouvi vários jogos no rádio, deixando a tv muda e muitas vezes deu vontade de desligar a tv.

      Curti a ideia do Atila. Vamos pensar a respeito!

      1. Obrigado. O rádio dá outra vida ao jogo. Gosto das transmissões tradicionais (Ex.: Penido da Globo, Nilson César da JP, Osvaldo Reis – Piquitito – da Globo Minas). Algumas outras conversam mais do que transmitem.

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