Monodrama (por Paulo-Roberto Andel)

 

Certa vez, quando era garoto, fui a um jogo do Fluminense numa quarta-feira à noite contra o Americano de Campos no Maracanã. Era uma noite de arquibancadas desertas em 1981. Vínhamos de “má fase” – apenas um título conquistado no “distante” ano anterior. Além do mais, todos nós sabemos que a torcida do Fluminense sempre marcou presença quando os jogos eram – e são – fundamentais, hoje um tema polêmico do qual me esquivarei agora. Falta no momento um Nelson Rodrigues para bater o martelo inquestionável a respeito.

Então o gigante de concreto era um deserto, contava-se gente em pequenos bolinhos à distância. Era apenas eu, meu inseparável cachorro-quente e também o refrigerante. Meus pequenos olhos pretos mergulhavam nas lentes dos óculos procurando nossa magia, nossas cores, nosso pó-de-arroz. Antes de me sentar bem à direita da tribuna de honra, Tia Helena e Seu Armando brincaram comigo e eu era feliz com isso, a coisa do pequeno garoto gordinho ser reconhecido por grandes líderes da nossa torcida. O Careca passou depois, era infalível na presença nos estádios, parecia um Bruno Vargas, um Maurício Lima, um Caldeira. Luizinho passou e me cumprimentou. Também vi o Zezé, que no ano seguinte me pediria para que eu não “furasse” mais uma greve de torcida – uma ótima história que conto depois. Para quem tinha um metro e meio, nossas bandeiras das torcidas eram uma imensidão de panos – muito branco, muita paz.

Vale a pena dizer que, naqueles tempos, os chamados times pequenos não eram a carne-assada na maioria dos jogos de hoje. Enfrentar Campo Grande, Americano, Volta Redonda, Olaria e outros, principalmente em seus domínios, significava ter trabalho duro pela frente. Uma vitória valia dois pontos, as retrancas eram ainda mais acentuadas e o pior: os pequenos eram formadores de jogadores, de modo que muitos dos jogadores dificultadores das jornadas dos times grandes acabavam, em algum momento, indo jogar neles ou mesmo fora do Rio de Janeiro.

Quase trinta e dois anos depois, não sei dizer ao certo dos lances desta partida em especial. Lembro de um jogo duro, brigado, difícil, sem muitas chances de gols para nós, nossa torcida irritada, o jogo sem liga. O que me marcou foi algo que tem vindo pelas cores do Fluminense a vida inteira: marcamos um gol no fim do jogo com Adão, quando um insosso empate em zero a zero já se desenhava de vez. O que sei é que, depois da vitória, aos poucos nossa torcida desceu a rampa do Maracanã cantando, não a plenos pulmões, mas sim numa mistura de alegria e alívio. Era um deserto de paz.

Há pouco, revi a escalação dos times. Curioso ver que a “má fase” do Flu era ter em campo praticamente todo o time campeão de 1980, com exceção do camisa 10 Mário, substituído por Cristóvão. Paulo Goulart, também, substituído pela então promessa Paulo Victor. E lembrar, aí sim, que nosso treinador era João Carlos, oriundo do basquete. Outra surpresa foi constatar que o deserto de 1981 nas arquibancadas agora é o razoável nos jogos do campeonato carioca: três mil pessoas. E pensar como a disputa do Rio era tão importante para todos nós num outrora perto. E quem poderia dizer naquele Maracanã que, vinte anos depois, Fluminense e Americano fariam uma final centenária?

Saí feliz do Maracanã, é fato. No dia seguinte, devo ter demonstrado isso no recreio do colégio, já esperando o próximo jogo, o próximo jogo e mais um próximo. Tudo devidamente renovado a cada três dias, a cada semana, mais a ansiedade que bate à porta no recesso do futebol. Essa expectativa de felicidade nunca mais acabou e continua a mesma para hoje, num jogo também de pouco público contra o Audax, noite de domingo no Engenhão. Contudo, onde está o meu Maracanã?

Desimportam o local, o adversário e mesmo a colocação na tabela. Quero ver o Fluminense com suas cores, suas lindas mulheres, seus amigos queridos, onde quer que seja o jogo. Tanto faz se é uma decisão na Libertadores ou uma despedida de turno estadual. Meu amor não dorme, meu amor não sonha, meu amor vive o dia e a noite que, juntas, estampam também a vida do Fluminense.

Amar não é fingir não ver problemas, longe disso. Temos aos montes no time, mas nada que não possa ser sanado. Amar inclusive é estar junto em horas pouco favoráveis, geralmente desprezadas pelos comodistas. Sim, há quem diga que esta sentença tenta dizer que um tricolor é mais tricolor do que outro, mas, desculpe, quem realmente tiver essa interpretação não deveria sequer ter chegado a este parágrafo. Todos têm amor, alguns expressam até com rispidez, outros preferem a serenidade. Apenas isso. Numa terra onde todos estão condenados a ser carne apodrecida ou incinerada num dia, toda empáfia e tom professoral estão condenadas ao ocaso. Pobre daquele que vê sua opinião acima de todas as outras.

Por ora, a única coisa que me preocupa tem a ver com o fato de escrevi várias vezes nesta coluna a palavra “era”.

Eis o meu monodrama.


Paulo-Roberto Andel

Panorama Tricolor

@PanoramaTri

Monodrama*: citação da obra de Carlito Azevedo, ed. 7Letras, 2009

http://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19810820&printsec=frontpage&hl=en

FLUMINENSE 1 X 0 AMERICANO – 19/08/1981

Local: Maracanã (Rio de Janeiro);  Árbitro: José Carlos Moura;
Renda: Cr$ 463.250,00; Público: 3.210;
Gol: Cláudio Adão 39 do 2.°;
Cartão amarelo: Zé Roberto;  Vermelho: Neneca

FLUMINENSE: Paulo Vitor, Edevaldo, Tadeu, Edinho e Rubem Galaxe; Delei, Gilberto e Cristovão (Renato); Robertinho, Cláudio Adão e Zezé (Gilcimar). Técnico: João Carlos Camargo

AMERICANO: Gato Felix, Neneca, Totonho, Oliveira e Serginho; Índio, Sousa e Sérgio Pedro; Carlos Roberto, Marquinhos e Zé Roberto (Honório). Técnico: Paulo Henrique

2 Comments

  1. Excelente. Provavelmente, vi esse jogo pela TV, aqui em Brasília. Na época, a TV Nacional transmitia os jogos de quarta à noite. Zé Cunha ou Januário de Oliveira, não lembro. José Inácio Werneck nos comentários. Daqueles jogos, lembro que em vários tinha um louco que ficava os 90 minutos correndo na geral.

  2. Amar não é fingir não ver problemas, longe disso. Temos aos montes no time “CLUBE”, mas nada que não possa ser sanado (a questão é quando, se todos acham que não é hora de cobrar e mudar).
    É sempre mais fácil quando estamos bem.
    São 3 anos jogados no lixo tentando elitizar o público, fazendo isso na hora (depois da copa talvez desse certo) e lugar (engenhão) errados, quanto nós perdemos com isso?
    Não teria sido melhor remar contra essa corrente ao invés de ir com os outros?

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