Meninos do Rio, tempos das Laranjeiras (por Paulo-Roberto Andel)

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I

Sábado de manhã, e por alguns momentos – ou muitos -, eu voltei no tempo e me senti com dez ou onze anos de idade, quando meu pai ainda me puxava pela mão e entrávamos pelo portal dos sonhos da Pinheiro Machado, até que cada passo nas arquibancadas imortais fosse um pedaço do céu. Fizemos isso muitas vezes, fosse para vermos os jogos dos juvenis, coletivos dos profissionais ou mesmo um treinamento de goleiros. Edinho só parava de cobrar faltas quando escurecia. Depois, voltávamos a pé das Laranjeiras até Copacabana, uma senhora caminhada.

Acordei cedo, fiz a fé na loteria, peguei o táxi e fui para o Fluminense. Estava programado o quinto encontro de jogadores veteranos do clube, com uma pelada e depois um churrasco. Cheguei bem cedo, comi dois pães de queijo no Fidélis e subi orgulhosamente os degraus das sociais. Antes, conversei com Paulo, que é um dos funcionários encarregados do almoxarifado e limpeza da sede – o que me impactou foi ver como ele é muito tricolor, dizendo de suas lembranças, do momento em que passou a torcer para o Flu e de outras coisas legais.

II

O Fluminense é uma atmosfera. Você passa por um corredor estreito e, ao se deparar com o campo de glórias, sente ali uma força, uma presença, a história que se esparrama. Exatamente ali nasceu a torcida do futebol brasileiro, graças às nossas moças torcendo seus lenços e também a Chico Guanabara, que desde cedo ensinou que o Tricolor é coisa bem séria. Ali, Welfare fez grandes gols, Marcos Carneiro de Mendonça fez suas grandes defesas, Oscar Niemeyer deu seus piques, a Seleção Brasileira fez seu berçário e tome Romeu, Brant, Batatais, Rodrigues, Pedro Amorim, Russo, Preguinho, Castilho, Pinheiro, Didi, mais uma multidão.

Não tenho religião, mas sinto a presença absoluta dos deuses de carne e osso que escreveram a história de Álvaro Chaves desde os tempos da Rua Guanabara. Existe uma presença. Frequento aqueles degraus de concreto há quarenta anos e sempre tenho uma sensação especial ao pisá-los. Do outro lado, as lembranças da nossa torcida, especialmente entre os anos de 1986 a 1995, quando fui presença cativa em jogos, treinos e chutes a gol – eu saía da UERJ e vinha para o clube, onde encontrava meu grande amigo Jorge Pinto – que vinha da Santa Úrsula – e então os esbaldávamos com as pancadas de Dago nas cobranças de falta. Ou aquela meninada a caminho do futuro: João Santos, Alberto, Zé Maria, Robert, Gama.

Sento-me bem perto da tribuna e penso nas Laranjeiras lotadas. Meu pai sentado ao lado. Nossas bandeiras. O pó de arroz. Foram anos incríveis que me sugeriram lágrimas de saudade, cercado pelo silêncio do sábado pela manhã, só quebrado pela chegada do querido amigo Carlos Perez, batalhador incansável da preservação da memória do clube através da valorização dos nossos ex-jogadores. Ocupado, ele precisa cuidar da administração do jogo; então o silêncio volta de mãos dadas com o campo dos sonhos, eu volto a ter dez anos de idade e todo o mundo pela frente. Ah, meu Fluminense da infância!

III

Pausa rápida para um abraço em Gabriel Peres, um dos maiores tricolores que conheço e que dá tudo de si para que as coisas deem certo nas nossas imagens, cenários e sons. Gabriel é de um elenco de Heitor D’Alincourt, Antonio Gonzalez e outros nomes que têm o que dizer porque são testemunhas, estafetas e artífices da história, não subcelebridades da internet que não resistem a cinco minutos de  análise curricular. Lá estava o meu amigo com seus cabelos à Zakk Wilde gravando a história, fotografando, filmando – não importa que não se diga mais de filmar, a expressão é eterna. Ah, meu Fluminense, que precisa de abraço e não de sabotagem!

IV

A pelada começou por volta das onze da manhã. O time dos veteranos com a camisa tricolor, enfrentando o Fluminense de branco dos amigos e convidados. Um jogo onde o Flu sairia vencedor de qualquer maneira.

Em certo momento, jogaram juntos Deley, Eduardo, Arthurzinho e Mário. É até difícil dizer o que estes caras representam para mim. O Arthur não ficou o tempo que devia nos profissionais, mas eu o vi fazer chover – literalmente! – no Maracanã, num mitológico 6 a 2 que o Bangu impôs à Gávea. Um monstro! De Deley, o mundo sabe – e é impressionante como, aos 58 anos de idade, ele bate na bola com a mesma curva que encantou a todos os garotos tricolores de 1980 a 1987 – o seu lançamento mais conhecido, aquele para o apoteótico gol de Assis em 1983, foi apenas mais um entre milhares de verdadeiras obras representativas das artes plásticas. Mário foi o camisa 10 de 1980, a aplicação, a velocidade, o talento e a garra – dispensa comentários. Eduardo veio mais tarde, mas jogou tanto, tanto, tanto que só a trajetória undercover explica porque não foi titular absoluto da Seleção Brasileira por dez anos consecutivos.

V

Tantos outros nomes, entre os que jogaram a pelada e os que vieram para o evento, tanta história, pouco importando os títulos ou as fases, o talento ou a limitação, mas a atitude de defender a camisa do Fluminense ao logo de todos esses anos.

Duílio, Edson Mariano, Osmar, Claudio, Walter, Durval, Marcelo Zebrinha, Robertinho, Ricardo Geraldinho, Fábio Bala, Didi 1970, Marco Antônio Feliciano, Carlos Alberto Pintinho, Flávio Renato, Paulo Lino, Mário Jorge, Edson Souza, os irmãos Alexandre e Ricardo Cruz, Erivelto, Alexandre Torres, Rogério, Betinho, um mar de gente. Qualquer torcedor tricolor perto dos cinquenta anos de idade já ouviu falar ou viu todos estes nomes. Quase todos estes ainda são meus botões. E eu passei dos dez aos vinte anos de idade, indo e vindo, respirando Fluminense e sonhando com os melhores anos da minha vida, quando éramos mais unidos aos domingos, éramos gente de verdade, quando um tricolor via no outro um irmão – ok, às vezes era preciso protestar, mas a cobrança não tinha a ver com rancor e ódio – era paixão e não cólera – não existia torcedor de candidato à presidência.

O time tricolor venceu por 3 a 2, um placar emblemático que se mistura com a história das três cores. Entre belos passes e dribles, arrancadas tímidas e belas jogadas, a certeza do tempo que passou e que não volta – mas também a certeza de que é possível celebrar o que tivemos de melhor: a nossa estampa.

VI

Em certo momento o Aieta apareceu e conversamos sobre várias coisas, mas o que importa é falar das divertidas: música em geral e Chiquinho Zanzibar. Não sei se alguém nos ouviu ou interceptou, mas o fato é que pouco tempo depois, o amigo visitou a sala de troféus e acabou involuntariamente trancado na mesma. A versão oficial é que o pobre funcionário não percebeu o Aieta por lá e saiu para resolver algum problema, trancando a porta. A lenda (mais do que plausível) dá conta de que, enquanto o rapaz saiu da portaria, o vingativo Chiquinho Zanzibar usou sua cópia indevida da chave e trancou-o. O Gonzalez o acudiu. Ufa!

VII

Do time de branco, um dos destaques foi meu amigo Cacá Cardoso, que transitou entre a zaga central e a quarta-zaga, sempre com elegância e cabeça erguida nos lances, mais a boa antecipação. Estava tão bem que cobrou um pênalti, mas o goleiro defendeu. Explica-se: Cacá não ia fazer um gol contra seu próprio time tricolor. Nota 8,5. Brincadeiras à parte, uma grande notícia é o amparo do clube para a criação da Associação de Ex-Jogadores, passo fundamental para a preservação e o respeito à nossa história.

VIII

Eu não fui ver um jogo no Estádio das Laranjeiras.

Na verdade, estive lá me inebriar com as lembranças dos melhores anos de minha vida. Para reencontrar a mim mesmo, a minha essência, os meus valores.

Revi vários de meus heróis e neles reconheci a história construída com os pés, pouco importando os dias alegres e tristes – eu sou Fluminense em qualquer ocasião!

Passei duas horas de paz nas silenciosas sociais das Laranjeiras e voltei no tempo.

Abracei meus amigos.

Depois de (mais) um ano tão difícil nos campos tricolores e em volta deles, eu deixei de lado tudo o que cerca a crônica, a literatura, a política e a politicagem.

Ali só me interessava ser o ator do único papel realmente importante que me cabe quando o assunto é Fluminense: o do torcedor que ama sua camisa, que cultiva, que celebra. E é deste sábado que trago os tanques de oxigênio para 2018 para meu uso particular. Quem quiser, que mendigue nas calçadas da ojeriza e da cólera; eu vou é caminhar pela calçada simples da amizade e do respeito. O ódio é dos covardes, dos medíocres e dos sem currículo: meu caminho é super outro, por motivos já bastante conhecidos.

A lamentar, apenas o fato de não poder estar na arquibancada com meu pai me puxando pela mão. Eu não sabia, mas poucas coisas na minha vida eram tão felizes como aquele ato, que representava a minha própria vida de garoto: perseguir o Fluminense, persegui-lo, pensar nele, esperar o próximo jogo, o próximo treino, a próxima lição de amor.

IX

Escrevendo estas linhas no sábado à noite, no aconchego de meu modesto lar, passo pelos canais de TV e me deparo com um belo show de Baby Consuelo, cantando um de seus clássicos: “Menino do Rio”, hit de Caetano Veloso que invadiu o Brasil em 1980. Foi exatamente naquele ano que, em condições financeiras terríveis, o Fluminense montou um time de garotos revelados na base e ganhou um grande título sobre o poderoso Vasco na final, deixando para trás o Mais Querido da Imprensa.

Aquele ano de 1980 foi o da nossa mocidade independente, o dos nossos meninos do Rio. O tempo passou, os cabelos ficaram brancos ou desapareceram, os vincos nasceram nos rostos, mas eles continuam por aí, correndo atrás da bola numa pelada como se fosse o grande jogo de suas vidas.

Que este sábado tenha sido o prenúncio de um Fluminense melhor em 2018: mais feliz, mais amigo, mais gente.

X

Esta coluna é integralmente dedicada a Leo Percovich, treinador do nosso Sub-20, e que passa por um momento muito difícil pela tragédia que se abateu sobre sua família. Que a dor seja superada e a reconstrução venha brevemente, e que esta coluna sirva de abraço forte e sincero ao nosso querido goleiro dos anos 1990. Fôrça Flu.

Panorama Tricolor

@PanoramaTri @pauloandel

#JuntosPelo Flu

Imagem: rap curvelo

2 Comments

  1. Parabéns Paulo Roberto, amigo afastado, pela crônica.
    Fez me lembrar meus tempos de Laranjeiras.
    Jogos cheios na arquibancada e social com pessoas do bem, sem palavrões etc.

    Os treinos eram bem reveladores e impactantes.
    Ao final de uma tarde, já escuro, Samarone e Oliveira disputavam quem conseguia jogar a bola no travessão. Grandes anos 60, mas conquistamos 2 títulos (64 e 69) numa década total alvinegra.
    No título de 80 o timinho se fez representar, depois da década da Máquina…

  2. Bom dia, Paulo. Que bela coluna. Em uma fração de segundos transportei-me de minha casa, em Curitiba, para as tuas lembranças. De repente me vi com cabelo e, em plenos pulmões, gritando “a benção João de Deus” naquela final de 1º turno de 1980. Muita gente indo embora e eu, sentado junto a um dos tuneis, quando Delei lança Assis…. É muita saudade legal. Outros tempos. De uma outra torcida… mas vivi isso. Valeu Paulo. abraços tricolores!

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