Fora do Maracanã (por Paulo-Roberto Andel)

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A vida tem seus sestros e dolências. Pequenos incômodos. No mais, os leitores deste colunista já estão cientes: poucas pessoas têm sido tão injustiçadas nessa torcida do Fluminense quanto eu. Mas sigo em frente: eu detestaria estar alinhado com os indiferentes e os que têm vibrado com a malversação do meu nome por simples despeito. O papel de esterco não me cabe, deixo para eles. Sou o jardineiro, é bem diferente.

Mesmo com o show de inabilidade demonstrado no atendimento eletrônico da venda de ingressos para a estreia diante do Joinville, fiz a parte que me cabia. O Fluminense é maior do que qualquer sanguessuga nele alojada. Tudo passa. Além do mais, sábado era noite de Magno Alves, Antonio Carlos e Pierre.

Ao chegar no Maracanã e deixar minha namorada na roleta de acesso, tive mais um revés: o telefone celular. Caiu de meu bolso. Não havia nada a fazer: fui para a outra roleta. Reencontrei Marina, começamos a telefonar incessantemente para que um eventual atendente retornasse. Toques, toques, toques e nada.

As cadeiras estavam bonitas com as pulseiras verdes. Meu total apoio aos realizadores. Vaidades pessoais devem ser deixadas de lado quando o assunto é Fluminense, uma lição a ser estudada diariamente por torcedores, sócios, conselheiros e principalmente dirigentes. O arrogante também vira carne podre num caixão depois de um enterro, no inevitável destino de todos um dia. A festa foi bonita.

Veio o jogo. Um primeiro tempo de luta. Tivemos muitas oportunidades, faltou a competência nos últimos toques na bola. O goleiro Oliveira, uma espécie de Guinazu com cabelo, fez excelentes intervenções. Na arquibancada, um agressivo flubabaca louco para que os vizinhos perdessem a compaixão. Não somos perfeitos. Engraçado ver o rapaz do Joinville deitado na barreira, o mesmo que foi expulso pelo sarrafo. Pierre quase fez um golaço no fim. Wellington Silva, antes.

Finalmente um telefonema. O celular foi localizado pelo taxista que nos trouxe ao Maracanã – o aparelho havia caído no banco de trás. Em breve, o traria de volta. Ainda deu tempo de ver o Magno e o Antonio Carlos saudando a torcida. Reencontrei-me com o passado de choro, tristeza, alegria e vitória. E uns dez minutos do segundo tempo, com o Tricolor caindo de produção, Robert em campo. Então desci para buscar o celular.

Começou outra partida, que jamais tinha visto em toda a minha vida.

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Descer as rampas desertas do Maracanã. Falar com o segurança para abrir a grade.

Num segundo e as experiências sensoriais mudaram drasticamente. O que era luz, cor e som resumiram-se neste único.

Primeiro encontrei o taxista. Dei-lhe um abraço. Num mundo de ratazanas em busca de oportunidades para roubar, sequestrar e achacar, aproveitando-se inclusive da lei para isso, é bom saber que alguém pode praticar uma boa ação para um desconhecido. Pediu apenas a corrida, no valor de 28 reais. Dei-lhe 50. Abraçamo-nos de novo, ele rumou para uma corrida no Alto da Boa Vista. Um trabalhador nobre.

Procurei uma televisão nos arredores. Nenhuma.

Olhei de volta para o Maracanã. Alguns seguranças na porta. Talvez meia hora de jogo. Um silêncio de concreto entrecortado por uma trilha sonora indescritível.

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Urros, suspiros, gritos e silêncios. Dignos de um Pink Floyd.

Vários tricolores com belas e populares camisas do time andando na pista de atletismo: pequenas famílias, casais de namorados, gente sozinha. Um senhor com um radinho de pilha daqueles dos tempos de glória.

Catadores de latinha solitários, invisíveis para a multidão metros adiante. Vinte mil pessoas gritando e sonhando com um gol, três ou quatro homens pobres e dignos sonhando com um prato de comida. Fora do futebol, a vida é bem mais difícil. Houve quem acusasse – jocosamente – os que pensam nos excluídos como pais dos pobres (nem Getúlio Vargas escapou dessa); bem melhor do que ser um filho da puta, creio.

Poucos carros na Eurico Rabelo. Um vazio imenso. Silêncios e respiros.

No chão, a sombra de humílimos transeuntes, nenhum deles contando com a permanente luz do inesquecível prédio da UERJ

Um torcedor desesperado por ter chegado atrasado tentava entrar a todo custo, sem sucesso. A rigidez do acesso ao Maracanã é bem diferente do seu péssimo atendimento eletrônico.

Outro torcedor deitado na pracinha, perto de uma família, escutando a partida pela rádio e sonhando com três grandes gols de Fred, Gerson ou qualquer outro que resolvesse.

Gente saindo. Dois, três, vinte, cem. Ainda era cedo demais. Movimentação intensa. Torcedores de todas as idades. Nunca imaginei que tantas pessoas fossem embora antes da hora. Antes dos 30 minutos.

Um urro mais fraco. Outro moderado. Sons de reclamação e insatisfação. Exasperação. Não parecia estar bom.

Um novo e vigoroso urro de dor. Perto de cinco minutos antes do fim. Um velhinho passa do portão e grita “Caralho! No travessão…”.

O concreto do Maracanã abrigando os corações desesperados de paixão.

E então ouvi o que parecia o solo final de “Run like hell”: uma explosão de alívio e conquista, alta, um hino de show de rock. Era o gol salvador com o urro dos urros, arrebatador, cardíaco. As pessoas vinham correndo pela saída, abraçavam-se, pulavam. Como deve ter sido naquele gol de barriga? Eu estava na arquibancada, não sei dizer dos corredores.

Gol no final, a magia permanente da encarnação tricolor. A sina.

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Encontrei meus amigos felizes na saída do estádio. A estreia valeu a pena. Os relatos do segundo tempo opaco foram confirmados pelo que vi no VT ontem. Mas vencer era imperativo. Belo chute de Vinícius, lembrando o velho Yan. Edson merecia o gol. O Felipe ainda de muleta e imobilizador, sorrindo como sempre. O Paulo Marcelo. Gustavo Albuquerque. Sergio Trigo. Alexandre e até o Marcio Affonso dizendo que era Marcio Affonso. O Estado-Maior fazendo presença. Também o Nelsão passando apressado, alegando ser por causa das crianças. Hum.

Depois comemoramos com uma Budweiser no Mamão com Açúcar, perto da Cruz Vermelha. A Marô veio, finalmente. Não brigamos para pagar a conta. Refizemos o velho trio de ferro com o Leo, feito os tempos de 2008 e 2009.

Foi o primeiro passo do Fluminense neste campeonato brasileiro de 2015. Estive perto demais e longe. Não se pode afirmar o que virá à frente. Certo mesmo é que, mesmo injustiçado e injuriado, meu amor não cessa. Levei 37 anos para escutar o som da minha torcida sem vê-la. Foi uma experiência indesejada, mas fantástica e ímpar. Nós somos um Pink Floyd nos escapes do Maracanã. E “Time” em inglês se escreve como “time” em português. No entanto, a vitória não pode servir para apagar erros quase crônicos, nem aplaudir o que já se pode chamar de “drubismo”.

Meu sonho é que alguns poucos torcedores, travestidos temporariamente de donos do Fluminense (numa mediocridade comovente) até mesmo quando recebem salário dele, um dia aprendam sobre justiça, solidariedade e respeito com uma pessoa de bem, tal como o taxista que norteou estas linhas. Os homens passam e só um estúpido não percebe o significado disso. Pensando bem, vários. Mas tudo passa.

A camisa verde é bem diferente e talvez interessante por causa de seu tom exótico. O short azul é estranho demais. Nesta semana tem Brasília. Vencer ou vencer.

Panorama Tricolor

@PanoramaTri @pauloandel

Imagem: pra

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6 Comments

  1. Dois mundos. Um dentro do estádio e outro fora. De forma brilhante, conseguiu conectar-se com os dois. Sensacional! Parabéns!

  2. Caraca, Paulo, tem certas coisas que só acontecem contigo! Tava entendendo nada a sua ausência no final (risos). Acabou sendo legal por produzir esta sensação!

  3. Já passei por isso como agente de transito, tanto no Maraca como no Engenhão. É horrível, você fica numa angústia só , tentando imaginar o que acontece lá dentro.
    Saudações Tricolores, sempre!!!

  4. Belo texto! Realmente, é uma experiência diferente estar do lado de fora. Tomara que seja apenas esta sua. Eu não aguentaria estar na pele do autor…

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