Democracia? Tem mais essa? (por Alva Benigno)

alva benigno green

Pronto. Só faltava mais essa… Falar sobre democracia dentro do seu club. Era a conversa que atrapalhava o carteado e a animada sauna, rituais sagrados para Chiquinho Zanzibar. Um baita anticlímax! Ele me diz que havia avisado à turma que não seria boa ideia abrir as eleições para qualquer pé rapado ou emergente sem tradição votar. Programa de fidelidade parecia essa coisa de bolsa pra beber cachaça e fazer filhos, tornar o lugar marcado por vagabundos. Era sair do litoral e ganhar o continente, o sertão miserável e nefasto. Chegou a ver índios com a camisa do seu club, e sentiu nojo! Voto é censitário e também por sobrenome, é algo do sangue azul que jamais deverá se avermelhar! Zanzibar berra tudo isso pra mim!

Já era duro, mas sofrido mesmo, de chorar, ver o menu do club virar cardápio, vinhos conviverem com cerveja barata, caviar com pão na chapa, patê de ganso com mortadela, imaginem ver jogador entrando pela porta da frente, ganhando rios de dinheiro, dourando as peles enceradas com bijuterias de puro mal gosto, chinelos de dedos pilotando carros sem choffeur. Que gente cafona! E mais agora, com esse senhor, o mais afrontador de todos, fazendo essas piadinhas depois das vitórias que não deixam mais que os garotos de Chiquinho possam ao menos passar umas semaninhas entre o time principal. Vender esses seres, para Zanzibar, era pagar as dívidas com Arcanjo Calabouço, bancar a Pantera, que havia ressurgido com suas chantagens, e fazer um favor a eles, civilizando-os!

Estava cansado das ameaças contra seus haitianos, na fazenda de Vassouras. Vivia com medo, imaginem só?!? Denunciariam a qualquer momento que sua caridade era crime de colocar pessoas (como assim?) sob trabalhos em condições análogas à escravidão. Que nome pomposo! Respeitava as raízes culturais haitianas e ainda alimentava seus naturais, dava água quase limpa, um jogo de roupas por mês, papelão seminovo pra dormir, estopa como travesseiros e trabalho para dignificá-los. De benfeitor da civilização passaria a criminoso. Que ridículo! E estava pensando em lhes permitir urinar e defecar quando quisessem, a partir do próximo mês. Quiçá escovarem os dentes, no outro. Francamente!
Hum, agora essa de… Como é mesmo? Tricolores pela Democracia. Manifesto? Agora essa de pessoas sem classe e sem sobrenome digno, vira latas, gente sem estilo, que nunca tiveram um senhor de escravos na árvore genealógica falar de política. E ainda mais se manifestarem! Manifesto é pros fracos, pros reclamões que não entendem, porque não tem capacidade mesmo, coisa de classe, sabe? Gente doente que cisma em acabar com as nossas tradições, que agora que ter todos os dentes na boca, ter medicamento para HIV de graça, e uma porção de regalias pra viver mais. Ora, bolas! Viver mais? Pra quê? Por que proibir de colocar creolina nas portarias? Isso não entra na cabeça do raivoso Chiquinho…

Crédito pra porteiro andar de carro financiado. E as tradições? Onde estão? Se morar perto do serviço, claro, porque isso é coisa de serviçal, e não do trabalho, tem que ser numa favela. Aliás, é fundamental ter uma por perto para que a doméstica já chegue pro batente com o pão fresquinho. Imagina se Chiquinho se dá ao desplante de pisar em padaria. Boulangerie, meus amigos, e olhe lá! Mesmo que com a Pantera comesse, lá pelos anos 1970, sanduíches de pão com sardinha, isso não importa mais! O que importa nesse país é que gentalha quer andar de carro, e não mais de trem e ônibus. Comer carne e iogurte? Se perfumar, comprar roupas, financiar casa própria? Só pode ser piada… Doméstica com carteira assinada, porteiro com essa coisa de… Sindicato!?! Não poder chamar mais ninguém de macaco molambento? Isso ainda mata Zanzibar novamente, e, assim, ele não vai desencarnar. Vai continuar a me perturbar. Minha única saída é escrever, como num transe, o que ele me diz. Isso é uma tortura pra mim!

Chiquinho anda inconsolável… Tricolores pela Democracia? Quem disse que isso é bom? Sabem escolher, desde quando? As instituições são feitas por pessoas de bem, que já nasceram assim, por mérito. Querem picadeiro, e fazer o club de Zanzibar virar circo. Só podem estar querendo brincar com tantos sobrenomes, tanta gente que não precisa provar nada sobre competência sobre qualquer coisa. Basta ter nascido, e bem, claro, pra ocupar uma posição. Degenerados sempre existem, e aos montes! Chiquinho guardava a coleção de um rapaz de íris clara, cheio de ideias estranhas pra gente de sua estirpe. Na juventude, escutou algumas de suas composições. Viu seu nome entre os detratores da fidalguia, e nem pestanejou: pegou todos os seus discos, empilhou. Depois de comer vatapá, caruru, e outras coisas da senzala com as quais seu nobre aparelho digestivo não reconhecia como alimento, despejou com toda a fúria o jato fecal, pintando os olhos azuis e o ridículo sorriso branco de marrom. Por ora, isso basta!

Panorama Tricolor

@PanoramaTri @pauloandel

Imagem: alva

3 Comments

  1. Quantos Chiquinhos não descobrimos nestes tempos de ódio? Mesmo sem linhagem alguma, mas metidos a tal. Muito sangue azul e pouco amor no coração. Parabéns!

  2. Texto espetacular. Divulgarei nas redes se você me der a permissão. ST

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