Carnaval (por Rogerio Skylab)

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Se não fosse a quarta-feira de cinzas… Mas naqueles quatro dias, o pobre virava rico, o homem, mulher, pirata, colombina, tirolês…

Mariano não virava ninguém. Morava no bairro da Tijuca com a mãe entrevada, entre a vida e a morte. Se maldizia o mundo ninguém sabia porque era fechado e de pouca conversa.

Não era bonito, nem feio. Era apagado. O serviço público abriu-lhe as portas quando uma tragédia abateu sobre sua vida: a morte do pai. Não chegou nem mesmo a se perguntar: e agora? A vida continuou a lhe sorrir: o seu sustento estava agora garantido pelo salário de servidor.

Mas apesar de tudo isso, podia-se ter uma outra leitura. Se a vida continuava a lhe sorrir, por outro lado não lhe trazia grandes questões. Mariano não chegou a conhecer o fundo do poço. Era, antes de tudo, um homem metódico.

A timidez é que o fazia retraído. Pouco afeito às amizades, não chamava a atenção. Passava despercebido pelos lugares e era quase uma sombra de si mesmo.Tinha um metro e sessenta e oito de altura.

II

Sua mãe vivia seus últimos anos arrastando-se pelos cantos. Era cardíaca. Mariano sendo seu filho único, custava muito a ela abandonar a vida, deixando para trás um filho tão moço. Arrependia-se de não lhe ter dado um irmão e ter sido em alguns momentos tão avara. Aquele apartamento de dois quartos expressava isso: despojamento e ausência de vaidade. Mariano evitava falar-lhe. A bem da verdade, Mariano evitava, inclusive, olhá-la. Dona Gertrudes parecia-lhe o sol de um mormaço.

Por isso, ele acordava todos os dias por volta das oito horas e não tomava o café da manhã para não prolongar o constrangimento de olhar à mãe. Ao mesmo tempo, tudo aquilo lhe causava arrependimento e também rancor, asco, tudo misturado. O trabalho salvou sua vida: se não fosse isso,  seria menos.

Só voltava de noitinha. Dona Gertrudes adormecia no sofá e se levantava quando Mariano entrava em casa. Então se dirigia para o quarto e sabe-se lá o que pensava a velha até pegar no sono.

Mariano, por sua vez, fechava a porta de seu quarto.

III

Eles moravam bem próximos  a um dos morros que circundavam o bairro da Tijuca. Acostumaram-se às rajadas de metralhadora que se ouviam todas as noites. Aquilo não lhes tirava mais o sono. Estranho era quando não ouviam.

Mas Mariano tinha os seus desejos, não vão pensar que era um autômato. Gostava sinceramente de futebol. Torcia pelo Fluminense. Talvez não fosse um cinéfilo, mas gostava de ir ao cinema após o expediente. Uma certa feita apaixonou-se perdidamente por uma colega de trabalho (essas coisas acontecem quando se é jovem). Ela se chamava Cristina e, assim como ele, era simples, ingênua e sem nenhuma experiência de vida. Voltavam juntos do trabalho todo dia e ele a acompanhava até sua casa no bairro de Vila Isabel.

IV

Dona Gertrudes, apesar da falta de saúde, esforçava-se em caminhar durante o dia, seguindo orientações médicas. Talvez fosse uma temeridade, naquele estado, caminhar pelas ruas tão violentas do bairro. Segundo estatísticas do IBGE, de três habitantes moradores da cidade do Rio de Janeiro, pelo menos um trazia no corpo uma bala incrustada.

V

A gente nunca sabe o que pode acontecer quando se está vivo. Se ela não tivesse acompanhado o marido em seu afã por melhores oportunidades na cidade grande, talvez Seu Manoel permanecesse junto dela e dos seus. A vida teria tomado um outro rumo e possivelmente ela teria tido outros filhos. A vida lhe correria sem sobressaltos. Mas longe dos parentes, Dona Gertrudes se sentia eternamente exilada.

VI

Naquele sábado de carnaval, Mariano pensou que talvez pudesse acompanhar algum bloco da cidade e consultou a programação do jornal. Faziam quase dois anos que havia terminado o namoro e sua vida continuava sem solução. Sentia ódio da mãe. Pensou em ir morar na zona sul, mas não havia como desvencilhar-se da velha. Ela, por sua vez, acostumara-se aos silêncios do filho.  Pensava que ele lhe tinha nojo e muitas vezes desejou pôr fim à vida.

VII

Dona Gertrudes, da janela de seu apartamento, podia ver a janela de outro apartamento. E quando ambas as janelas estavam abertas, cada um podia ver o interior da outra. Como Dona Gertrudes pouco falava e muito via, acontecia de ser aquele um de seus passatempos preferidos. Foi assim que Dona Gertrudes tomou conhecimento daquele morador que, assim como ela, vivia só. Em pouco tempo, ambos passaram a se corresponder através da linguagem dos surdos-mudos. Passavam todas as manhãs fazendo declarações de amor até que, de tanto insistir, o vizinho de Dona Gertrudes conseguiu finalmente convencê-la de se encontrarem.

VIII

Mariano permanecia longe de tudo. Alimentava o sonho de que, quando sua mãe morresse, finalmente iria ser ele mesmo. E sua primeira providência seria mudar-se de bairro. A tristeza da Tijuca inundava seu coração. Olhou o jornal em busca de algum bloco – logo ele que não dava a mínima pra carnaval. “Alegria retardada”, era como se referia aos foliões. Mas naquele dia ele faria uma concessão, se não quisesse morrer de tédio. Eram diversos os blocos que sairiam naquele sábado de carnaval.

Não guardava nenhuma expectativa de conhecer alguém – já fôra o tempo das grandes esperanças. Seu único mérito era o ponto de vista realista. Sua mãe iria morrer em breve, ele permaneceria só como sempre fora, e, caso nenhuma bala perdida lhe atingisse o cérebro, se aposentaria e morreria velhinho. Já punha em prática o seu modus-vivendi, evitando falar com a mãe, o que dava a essa pobre senhora a impressão de que seu filho a odiava. A este, um sentimento de culpa enchia todo seu ser, porque a amava e não conseguia demonstrar esse amor a não ser através da indiferença. E toda vez que se punha a pensar na morte da mãe como a desejá-la, na verdade, era medo o que sentia.

IX

Quem atravessa o túnel na direção da zona norte e passa pelo bairro da Tijuca, através de suas ruas tranquilas, não imagina o que ocorre em seu interior. Porque tirando a Praça Saens Peña, a Tijuca é indevassável: poucas pessoas nas ruas, poucos cinemas, poucos teatros. A vida lateja no interior das casas. Através de suas fachadas, você não ouve nada, você não vê nada.

Enquanto isso, Dona Gertrudes aguardava ansiosamente que o filho saísse, para que pudesse pôr em andamento o plano traçado: ela faria um sinal para o vizinho do lado, informando-lhe que o caminho estava livre.

X

Mariano pensa: ou ela ou eu. Não era justo sacrificar sua vida, sendo ele tão jovem. Faria o que lhe competia: olhar, olhar e olhar. Todas as suas oportunidades haviam sido queimadas: chegou a ter nos braços uma jovem que o amava. Agora lhe restava continuar ao sabor dos dias, sabendo de antemão, que nada mais haveria de lhe acontecer. Envelhecia à olhos vistos.

XI

Quando Mariano finalmente saiu, Dona Gertrudes fez o gesto tão aguardado. Em poucos segundos, estava o vizinho na porta de sua casa e fez a campainha soar uma, duas, três vezes. Em poucos segundos, um mundo de coisas passou pela cabeça de Dona Gertrudes: o nordeste, a morte dos pais, a vida numa cidade grande, o infarto fulminante do marido; pensou também no quanto o filho a odiava e nas inúmeras vezes que ela mesma decidiu pôr fim à vida. Ele estava agora ali, bastava que ela lhe franqueasse a entrada. E a campainha voltou a tocar uma, duas, três vezes.

XII

Mariano não conseguia entender aquela “alegria retardada”. Parecia imune a tal estado e nunca perdia a razão. Era um homem metódico, organizado. Diante de seus olhos, um desfile de máscaras e gente enlouquecida. O carnaval sempre lhe pareceu um hospital psiquiátrico. À medida que foi acompanhando o bloco, muitos pensamentos lhe vinham à mente. Eram nos momentos de maior balbúrdia que lhe vinham os pensamentos mais profundos.

Pensou em matar a mãe. Depois, pôr fim à própria vida. Abandonar o trabalho sem justa causa e nunca mais voltar pra casa. Os pensamentos foram lhe acontecendo num torvelinho à medida que novas máscaras cruzavam seu campo de visão: um clóvis, um pirata, uma bailarina… uma praia deserta, o beijo de Cristina – sua ex… Tudo lhe vinha aos jorros: a morte de seu pai, o sofrimento da mãe…

Não sei por qual desvio, Mariano chegou até ela. Talvez não fosse nem um desvio, mas uma continuação do que pensava e via.

XIII

Não devia contar com mais de vinte e cinco anos. Era morena clara e tinha os cabelos lisos. Ela o havia reparado, antes dele à ela, o que não permitiu à Mariano muita liberdade. Esta é só garantida aos que vêem sem serem vistos. Mariano se sentiu pela primeira vez violado e, nos poucos segundos que a reparou, pôde admitir o óbvio: era uma mulher da qual todo homem gostaria um dia de desfrutar.

Descontados os momentos em que o objeto do desejo desaparece na multidão e aqueles em que o observador é observado, restava-lhe de fato pouco tempo para constatar o quanto ela era feminina nos gestos e nos modos de dançar. Talvez estivesse perdida de seu grupo. Mariano sorriu do quanto a vida lhe vinha de viés e achou melhor aproximar-se dela para não correr o risco de perdê-la.

O bloco era constituído por grande quantidade de jovens, oriundos das faculdades que existiam nas cercanias, como por trabalhadores que desciam dos prédios e se misturavam à massa. As marchinhas se sucediam umas às outras, de maneira que Mariano se lembrava dos antigos carnavais, quando, ainda criança e de mãos dadas com seu pai, saía pelas ruas atrás dos blocos.

Em dado momento, se olharam, dessa vez não de forma idealizadora, mas despidos de toda convenção. Continuaram lado a lado e cruzaram várias ruas do Centro, ainda que Mariano, vez por outra, desconfiasse do quanto o amor e todas as suas formas de expressão eram ridículas.

Bastaria-lhe um desvio. Estava a seu alcance o fim daquilo tudo – para tanto, bastaria que se desviasse pro lado e se imiscuísse em meio à turba. Aquela atitude, no entanto, lhe pareceu igualmente idiota, e, qualquer direção que pudesse tomar, ainda assim, seria a mesma coisa. Permaneceu onde estava como um pedaço de pau em meio à corrente. Teve a estranha sensação de que não era senhor de si mesmo e nunca o fora. Mas quando deu em si,  já estavam juntos e abraçados.

XIV

Daí aos beijos é um passo. É quando colocamos de lado os preconceitos. À essa altura, o senso de realismo, ao qual Mariano devotara tantos anos de sua vida, se não caía, desabando no chão, tomava ao menos novas cores e outros sentidos. Por exemplo: estava claro para si que era igual a todo mundo; ridículo, tal e qual os outros; movido à crenças sem nenhum sentido, como todo mundo. À medida que ele a beijava e sentia o hálito quente de sua boca, ficava mais convencido que o realismo do qual tanto se envaidecera, era uma máscara, como o era a do Clóvis.

Ela o apertava nos braços e Mariano podia perceber o quanto era feminina e calorosa. Chamava-se Glauce e fazia faculdade de cinema. As poucas palavras trocadas, fizeram apenas Mariano manter-se no vácuo. E nem valesse mesmo a pena saber de quem se tratava, os seus gostos ou afinidades. Pelo menos não naquele momento em que prevalecia o desejo cego e a curva voluptuosa dos corpos.

XV

Segundo estatísticas do IBGE, é em novembro, nove meses após o carnaval, o período de maior número de nascimentos. É também durante o carnaval, o período em que mais se contraem doenças transmissíveis sexualmente.

O leitor perguntará intrigado em que tudo isso vai dar afinal. Na cama, naturalmente. Sem nenhuma novidade: no que poderia dar dois jovens que se acabam de conhecer num bloco de carnaval? Não vão passar o resto do dia a discutir filosofia. Certamente, não encontrarão o amor, presente hoje em dia numa escala mínima.

Foram pra cama e o carnaval terá sido para eles inesquecível, sobretudo pelo imprevisível.
XVI

O Motel ficava bem próximo às ruas do Centro, de maneira que, mesmo dentro do quarto, podiam-se ouvir as marchinhas e os sambas tocados lá fora. O carnaval entrava pelas frestas e se prolongava no quarto. Glauce pediu que apagasse a luz e seu gesto não era nada estapafúrdio, em se tratando do pouco tempo de conhecimento. Não havia entre eles familiaridade, a não ser o bruto desejo.

Mariano se ressentia de uma longa ausência, desde o término do seu namoro. Há quanto tempo não sentia uma cútis tão fina, tão delicada? Um perfume que o levasse à terras nunca dantes desbravadas?

Lá fora, uma bandinha tocava um poupourri de velhas marchinhas de carnaval como um irônico fundo musical pra algo que permanecia fora dos eixos. Quem sabe tivesse Mariano algum indício, no meio do caminho, mas que o fizesse estremecer de medo pela possibilidade de perdê-la? Talvez um murmúrio que tivesse sido soprado ao seu ouvido, mas logo abafado pelas estridentes notas de carnaval. E agora, voltava a subir à superfície, tamanha a evidência.

Eles estavam despidos no quarto escuro e Mariano descobriu o erro: Glauce era homem.

Quantas estórias Mariano não teria já escutado sobre o tema? Homens que, inconformados, punham-se a dar porrada. O seu realismo aflorava com toda violência. Não podia mesmo dar em bom resultado a sua capitulação, ele teria que suportar agora o real que lhe gritava aos ouvidos: Glauce é homem!

E se ele continuasse a beijá-la, fazendo de conta? Como era delicada, mais inclusive do que a sua ex. As marchinhas continuavam lá fora, e ele se viu em meio a um duelo ao qual não fôra chamado.

Glauce percebeu que havia ganho quando não precisou mais dissimular. Talvez já tivesse passado por maus momentos. Quanta eficiência em seus movimentos! Como se fosse ela uma teia, da qual Mariano estivesse refém e, mesmo livre, não fosse mais capaz de se libertar.

Ela o beijava agora de maneira diferente e de certa forma o forçava a ser o que nunca fora. Mariano teria que se preparar para uma longa travessia,  as âncoras já haviam se levantado. Glauce o guiaria e talvez fosse essa a sua mais nobre função.

XVII

Já amanhecia e não havia mais carnaval. Alguns corpos amanheciam na calçada, despedaçados de tanto cansaço. Glauce caminhava ao lado de Mariano como se nada houvesse acontecido e era uma obra prima a quem ninguém poderia pôr reparos.

Ao chegar em casa, Mariano não suspeitou de nada: todas as coisas se mantinham em seus devidos lugares. Dona Gertrudes, estirada no sofá da sala, aguardava a chegada do filho para levantar-se e dirigir-se ao quarto. Mas, naquele dia, ela quis falar-lhe e havia algo de estranho em sua fisionomia.

Mariano pôs-se a ouvi-la meio à contragosto e ela contou-lhe então que na manhã anterior, mal tinha saído, tocaram a campainha. E como supôs que seu filho tivesse esquecido algo, abriu a porta sem olhar. Foi então surpreendida por um ladrão que com uma arma em punho, obrigou-a entregar todo o dinheiro. Não satisfeito com o que lhe havia fornecido, pôs-se a revirar a casa até encontrar os dólares que Mariano havia acumulado tantos anos e com os quais pretendia comprar um apartamento na zona sul: seu grande sonho.

XVII

Naquele instante, Mariano talvez tenha tido um instante de grandeza porque abraçou ternamente a mãe, como há muito não o fazia. Perguntou-lhe se haviam-na machucado e ficou aliviado de saber que não. Como seu quarto estava todo revirado, pôs cada coisa em seus devidos lugares e sentiu uma grande pena da mãe.

Em poucos minutos, seu quarto manteve-se como sempre fora.

Como era domingo de carnaval, fizeram o que há muito não faziam: mãe e filho foram à igreja e depois almoçaram num restaurante do bairro. O roubo e os maus momentos por que passaram, impetraram o milagre de reaproximar mãe e filho.

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@PanoramaTri @rogerioskylab

Imagem: rosky

2 Comments

  1. Grande Skylab! No ato da leitura seu texto sempre me traz uma ansiedade. Lendo, espero sempre pelo momento em que o Fluminense será citado, lembrado, homenageado!

  2. Para Mariano:

    Mariano, aproveite a estabilidade do serviço público. Trabalha direito, pra não ser um ladrão do povo. Use seu tempo livre para fazer mais coisas. Compre um violão, aprenda umas escalas. Componha uma música para sua mãe, ainda que ruim, é sua, e sua mãe irá gostar.

    Divirta-se.

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