Aquilo não é “só” um echarpe tricolor (por Gustavo Coelho)

Ontem a imagem de um echarpe do Fluminense pendurado entre os dois principais tambores da torcida do Paris Saint Germain que fica no setor tradicionalmente conhecido como Virage Auteuil no Parc des Princes, lado antirracista, antixenofóbico, negro, pró-palestina, de um estádio que vive as tensões de uma europa multicultural, assim como camisas do Sobranada e punhos colados sendo exibidos por alguns de seus membros, chamou atenção tanto da grande mídia quanto das pessoas envolvidas e interessadas na cultura das arquibancadas. Naturalmente, como já é praxe na ditadura da opinião convicta e automática dada “ao vivo”, demanda que parece dar ao jornalismo uma sensação falsa de veracidade, mais uma vez flagramos aquela que é hoje sua principal atividade – a de rapidamente “julgar parcial ou erradamente”, como Nietzsche já denunciara sobre os tempos modernos em “Humano, demasiado humano”:

“Como falta tempo para pensar e ter sossego no pensar, não se estuda mais as opiniões divergentes: contenta-se em odiá-las. Em virtude da enorme aceleração da vida, o espírito e o olhar estão acostumados a ver e a julgar parcial ou erradamente e todos se assemelham aos viajantes que tomam conhecimento de uma região e de um povo, sem sair do trem”.

Nesse afã, o comentarista solapado sob as atividades pouco nobres de sua profissão, a saber, comentar qualquer coisa que apareça na sua frente na mesma velocidade da coisa que aparece, taxou: “identificação principalmente com o Thiago Silva ‘O Monstro’”, como se a exibição de símbolos de um outro clube numa torcida diferente, em qualquer arquibancada, ainda mais em meio a seus principais tambores, fosse possível de se sustentar somente na origem de um atleta. Tal afirmação, portanto, que parece ser somente um simples equívoco demonstra um absoluto desconhecimento do papel que o rito, ou seja,  que a vida banhada pela própria vida, tem ainda, a despeito de todo processo de clientelização e consequente desmitologização do futebol, nos setores mais “quentes” das arquibancadas, setores de resistência não somente no sentido político padrão, mas uma resistência ritual, subjetiva, corporal, libidinal, comunitária, contra o confortismo resfriado de ocasião em condições ideais de temperatura e pressão que forjam as bandeiras de plástico dos demais setores. Por lá não se é bem recebido só porque pagou ingresso, não se exibe outra echarpe entre os tambores só porque um jogador jogou em outro clube. Não, arquibancada não oferece todos seus segredos ao girar de uma catraca, arquibancada é passe, é terreiro, é saber dar um passo e depois outro.

Pensei em escrever tudo o que vivi com eles entre 2012 e 2013 quando estive, durante 6 meses, morando em Paris fazendo parte do meu doutorado na Sorbonne (com bolsa de estudos fruto das políticas sociais, pasmem, do PT) no setor de sociologia, estudando os humores juvenis, seus excessos, perigos e prazeres tensionados num mundo que, regido pela língua unívoca da correção, desqualifica suas sensações. É sobre o drama de sentir-se explodindo num mundo regulado por sensores que preveem e reprimem antecipadamente a menor das faíscas, que escrevi minha tese e que virou o livro Deixa Os Garotos Brincar. Nele, há alguns trechos de entrevistas e histórias que vivi com a molecada dos Banlieues de Paris, embaralhando minha posição de torcedor/pesquisador. Viajamos juntos, fomos revistados pela polícia juntos, impedidos de entrar na cidade de Toulouse juntos, entramos sem camisas de time no estádio do Valencienne, na arquibancada dos alemão, onde parisienses eram proibidos, isso tudo quatro anos antes do echarpe estar nos tambores.

Mantivemos contato, trocamos adesivos, camisas, da Young e do Fluminense, até que este ano eles vieram ao Rio de Janeiro. Chegaram nos últimos dias do carnaval. Passamos o domingo do Fla x Flu acolhidos pela galera do Sobranada e não sobrou realmente nada. Cerveja desde as 10 da manhã, camisas, echarpes, metrô, busão, surfe no busão, canta o guerrilheiro, morteiros, cabeção de nego, fumaça verde e grená, troca camisa, campeões, mais cerveja, volta de busão, festa à noite, pega o boné da raça, catiripapo. Alguns dias depois, museu do Fluminense, acompanha-los no duro jogo contra o “puta Barça”, Tobé dá um echarpe do Fluminense (aquele) e ganha uma camisa do K-SOCE Team, ensaiamos canções de bancada juntos. “Paraparapapara Paris SG, Paraparapapara Fluminense”. Favela, mais cerveja, não saber direito quem pagou o que. Au revoir!

Na arquibancada a grandiosidade se funda nos mistérios da vida, não nas evidências de um ingresso ou de um atleta. Tão de bobeira!

Panorama Tricolor

@PanoramaTri

Imagem: france/gc

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3 Comments

  1. Como não amar as arquibancadas?
    Como não amar o sobranada
    Como não amar os ultra?

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