A criança que somos (por Mauro Jácome)

JÁCOME 2

No começo, era na mesa. Tinha uns detalhes desenhados que podiam ser usados como as linhas do campo. As laterais, a linha de fundo, até o espaço para colocar as traves. Cada uma com seu “véu de noiva” que tinha, cuidadosamente, preparado em lugar daquela imitação artificial de rede.

Espalhados os botões pela mesa, de um lado, sempre, o Fluminense: Félix, Oliveira, Assis, Galhardo e Marco Antônio; Denílson e Didi; Cafuringa, Flávio, Samarone e Lula. O adversário revezava, afinal, todos mereciam uma surra do meu Flu. Os anos já iam por 72, 73, 74, mas o time ainda era o de 1970. O do primeiro título nacional. Um dos imortais.

“O relógio maaaaarca”, “Estão desfraldadas as bandeiras tricolores”, “desce a patota do Fluminense”, “Cafuringa gingou na frente do marcador, foi ao fundo, cruza…”, “Espalma Félix, com as pontas dos dedos”.

Tinha fascinação pelas narrações de Waldir Amaral. Uma voz que vinha não sei de onde, indescritível, diferente, muito diferente das demais. Cadenciava o jogo, mesmo o futebol ganhando aceleração a cada dia. A bola já estufava as redes do Maracanã, mas ele ainda vinha conduzindo-a pela intermediária. Era quase que uma repetição do gol para quem via ao vivo.

Na minha mesa, com os botões espalhados, o jogo também corria cadenciado. Tinha que ser igual. Não tinha ídolos somente dentro das quatro linhas, havia, também, dentro das quatro paredes das cabines. Além de lento, meu jogo parava. Hora dos comentários. Tal qual quando se ouve uma transmissão pelo rádio, quando o narrador convoca o comentarista, o jogo para. Na minha cabeça tudo ficava interrompido: a bola, o tempo, o grito do torcedor. Todos queriam entender o que se passava. Luiz Mendes, enciclopédia cerebral, e seu “minha gente”, João Saldanha, “meus amigos”, misturavam meus comentários. Tinha mais um, tricolor, que o nome me foge agora.

Tempos de raros jogos na TV. À distância dos palcos por onde meu time apresentava seus shows, o rádio assumia o papel de me transportar, não para as arquibancadas, mas para as cabines. Ao lado de meu pai, ouvindo, via o jogo em cada palavra do narrador e entendia o que se passava em campo pelos comentários dos meus, também, ídolos. Foi assim que Seu Mundico me ensinou a gostar de futebol. Imaginando mais do que assistindo. Daí vem minha fascinação por uma transmissão de rádio. Hoje, com os olhos abarrotados de futebol pela TV, a cabo, sem cabo, “peiperviu”, aberta, não dispenso o rádio. Nem precisa coincidir com o jogo que vejo, pode ser qualquer um, mas se for o mesmo, melhor. As imagens da TV a cabo não obedecem aos ponteiros do relógio. É o deley. O som do rádio pela internet também não. Desconexos, assíncronos, mas nada que o “pause” na imagem não resolva e o narrador alcance seu próprio jogo. Neste mundo da tecnologia, são artifícios necessários para manter minha paixão acesa. Às vezes, tão forte, que chego ao ponto de abrir duas, três janelas diferentes no meu “brauser”; dois, três jogos distintos, sobrepostos, misturados, mas, ao mesmo tempo, isolados na minha consciência, há anos, treinada.

Os jogos de botões eram a reprodução daquilo que ouvia. Levavam-me àquilo que sonhava ser. Não era, talvez, nunca seria, mas isso pouco importava. Naqueles momentos, eu sabia que milhares me ouviam e eu tinha muito a dizer.

Domingo passado, realizei parte desse sonho. Estive numa transmissão de um jogo pelo rádio. Convidado pela equipe de esportes da Rádio Mega daqui de Brasília, comentei um jogo. “Meus amigos”, “minha gente”, eram os botões espalhados na mesa novamente. Não era Félix, mas era Cavallieri. Não era Marco Antônio, mas, Carlinhos. Jean, Wellington Nem, Rhayner, em vez de Denílson, Cafuringa, Lula. Por Flávio, o faro de gol de Sóbis. O belo gol de Thiago Neves revivendo Samarone.

Diferentemente daqueles tempos infantis, não sabia qual seria a pergunta que o narrador iria me dirigir. De supetão, sem preparo algum, as palavras tinham que ser, ao mesmo tempo, instantâneas, corretas, coerentes, imantadas. Luiz, João, Mundico, estavam ali, querendo entender aquele jogo. Suava a mão, mesmo assim fui. Até o fim, fui. Ali era a cabine. Não era Waldir Amaral, cadenciado, era Maurício Leandro, dinâmico, eletrizante. Tanto quanto os outros, elo de vários sonhos para uma única realidade. Simplício era, agora, um dos “trepidantes”. Não perdia um lance e detalhava tudo em minúcias. Nada passava despercebido. Brettas era o Mendes, o Saldanha, sucinto e preciso, qual um jogador de sinuca que mata todas as bolas com uma única tacada. Luiz Fara rico nas informações de sua larga experiência pelo mundo do futebol. Ali, estavam meus novos ídolos.

O jogo foi…, foi…, melhor, foram dois jogos. O meu jogo de botão. Sem tirar, nem por, o mesmo que eu jogava. As vozes do imaginário eram, naquele momento, a realidade que vivera criança.

No outro jogo, o real, da mesma forma que nos tempo antigos, o Fluminense impunha uma surra no adversário. O da vez, o Voltaço, tomou um baile. Sóbis & Cia. jogaram como que impulsionados por minha palheta. Fizeram o que eu queria que fizessem. Não podia ser diferente. Até o gol deles tinha a mesma dose de cinismo, ou hipocrisia, quando deixava o adversário tirar o zero do placar. Tudo para parecer real e não ser tão cruel.

Jogaram como se Guayaquil não existisse logo mais. Minha primeira intervenção foi querendo saber onde o Fluminense estaria com a cabeça: em Volta Redonda ou no Equador. Isso determinaria o ritmo de jogo. O Fluminense estava em Volta Redonda. Estava muito ali, no Estádio da Cidadania. Coitado, o adversário era mais um amontoado de botões esperando a derrota.

Wagner e Carlinhos deslizavam pela mesa. Um tomou conta do meio, o outro, do lado esquerdo. A esquerda foi o mapa da mina. Uma hora falei isso no microfone da rádio. Maurício entendeu, concordou e adotou. Naquele momento, era o Waldir Amaral orientado pelo Saldanha.

Sóbis fez o que nunca tinha feito. Só em jogo de botão conseguimos impor nossa vontade. Obedecem, executam. Sóbis obedeceu e executou. Elegi-o melhor em campo. Não havia dúvidas. Todos concordaram. Todos, inclusive, Saldanha, Mendes e Seu Mundico.

A torcida ficou feliz, pulou, gritou, vibrou, cantou. Fez, também, aquele mesmo chiado que saia da garganta daquele moleque magrelo dos anos 70. Impossível de representar ortograficamente aquele som que imitava uma torcida, um estádio cheio em vibração. Tentei, mas não consegui, por escrito, som similar. Mas, acho, todos sabem do que falo. Um dia, todos fizeram esse som.

O jogo acabou, o Fluminense ganhou, aliás, como sempre, surrou. “Está deserto e abandonado o Maracanã…”, imaginei ouvindo Waldir Amaral aos finais dos jogos. Naquele breu fictício em que, invariavelmente, eu me envolvia, recolhi os botões e fui radiante para a cama sonhar. Domingo, sonhei acordado. Ouvi novamente cada lance que Maurício Leandro narrou magistralmente, cada perigo que Simplício descreveu como um replay, cada intervenção visionária vinda da bola de cristal do botafoguense Brettas, cada informação preciosa de “Lula” Fara. Dormi agradecido.

Talvez, ninguém tenha a medida de quanto saiu feliz aquela criança que ainda sou. Como imaginar?

Mauro Jácome

Panorama Tricolor

@PanoramaTri

Imagem: radioerevista.com

Revisão preliminar: Rosa Jácome

4 Comments

    1. Bingo. Obrigado pela lembrança. Fazia dupla com o Antônio Porto, não é isso?

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