1970 – parte IV (por Mauro Jácome)

Ao final da segunda rodada do turno decisivo, o Fluminense tinha 4 pontos, o Palmeiras 2 e Cruzeiro e Atlético, 1 cada. A dupla mineira já estava desclassificada, pois vitória valia somente 2 pontos. O título estava entre Fluminense e Palmeiras. Para o time paulista, a única possibilidade de ser campeão seria vencer o Cruzeiro e o Fluminense perder para o Galo. Nesse caso, uma partida extra decidiria o campeonato.

Após os dois gols, nas duas primeiras partidas do turno decisivo do Torneio Roberto Gomes Pedrosa, Mickey caíra nas graças do torcedor e, também, do exigente técnico Paulo Amaral:

Flu mantém Mickey mesmo que Flávio melhore

“Ainda que Flávio tenha condições de jogo, Mickey será mantido no ataque do Fluminense depois de amanhã contra o Atlético Mineiro, pois Paulo Amaral acha que seria uma injustiça tirá-lo agora da equipe.” (JB, 18/12/1970)

Mickey já teve alegrias, mas nunca tanta emoção

“O fato da torcida do Fluminense ter carregado Mickey nos ombros no Aeroporto Santos Dumont foi para ele a maior emoção que já teve em sua vida esportiva. (…)

– Eu, que sempre me conformei com a reserva, desta vez não estou surpreso. Acho que fiz por merecer esta oportunidade e vejo justiça em ser desde já escalado para jogar domingo – confessa ele satisfeito e esperançoso de conquistar mais gols.

– Se nessas partidas em que substituí Flávio entrei sempre com a determinação fixa de fazer gols, contra o Atlético então nem se fala. Eu tenho que conquistar pelo menos um gol – diz ele batendo com os punhos na mesa em que está sentado enquanto fazia tratamento.” (JB, 18/12/1970)

Além de Flávio, que desfalcaria mais uma vez o time, Samarone fora expulso em Belo Horizonte. De imediato, Paulo Amaral decretou:

Cláudio substituirá Samarone contra o Atlético (JB, 17/12/1970)

Cláudio era o Cláudio Garcia. Em 1969, no Fla x Flu decisivo, Cláudio marcou o segundo gol tricolor. Em 1983, Cláudio Garcia foi contratado como técnico do Fluminense. No campeonato carioca daquele ano, o tricolor do Casal-20 fez uma excepcional campanha na Taça Guanabara, conquistando-a de forma invicta. No entanto, o treinador cometeu o grande erro de sua carreira: abandonou o Fluminense em meio ao campeonato e foi para a Gávea ganhar um punhadinho a mais de dinheiro. O castigo veio no triangular decisivo: Assis fez aquele gol aos 45 minutos e eliminou o Flamengo.

Na Europa, como faziam todos os anos, os cronistas da Associated Press, escolheram Pelé o esportista do ano. Pelé havia sido o principal jogador da Copa do México, quando o Brasil conquistou o seu título mais reverenciado de todos os tempos: o tricampeonato.

No cinema, Richard Harris estrelava o filme “Um Homem Chamado Cavalo”. Assisti ao filme pela TV, anos mais tarde, e até hoje vejo aquela imagem de Morgan sendo içado com ganchos cravados ao corpo…

O futebol disputava espaço com “Irmãos Coragem”. A novela, que durou um ano, com 328 capítulos, fez um sucesso estrondoso, inaugurando a era de telenovelas clássicas assinadas por Janete Clair, por seu marido Dias Gomes, entre outros.

O governo militar tentava transmitir tranquilidade em meio ao sequestro do embaixador suíço. Os trotes e a falta de comunicação com os verdadeiros sequestradores deixavam a ditadura inquieta:

Siseno: a normalidade do País não foi abalada

“O general Siseno Sarmento, comandante do I Exército, disse ontem no Rio, após a cerimônia de entrega de espadas aos novos generais-de-brigada, que ‘um bando de fanáticos não conseguiu abalar a normalidade do País, e uma das provas é esta cerimônia’” (Folha de São Paulo, 19/12/1970).

Enquanto isso, na política interna do faz-de-conta, consequência do regime, as eleições de novembro trouxeram personagens novos ou antigos, que marcaram a vida política do país, para o bem ou para o mal, e que (re)começariam seus mandatos em 1971, tais como: Tales Ramalho, João Alves, Antônio Carlos Magalhães, Rubem Medina, Amaral Neto, Célio Borja, Chagas Freitas, Nelson Carneiro, Aureliano Chaves, Ademar de Barros Filho, Plínio Salgado, Tancredo Neves, Ulisses Guimarães.

Chega o grande dia: 20/12/1970. Fluminense e Atlético pisam o gramado do Maior do Mundo, quando o Maracanã era, realmente, o maior do mundo. 200 mil, 183, 177, 169, 155, 112; abarrotar o Maracanã era comum. Vendiam-se ingressos enquanto havia demanda, como se não houvesse limite. No dia da decisão do Robertão de 1970, mais de 130 mil pessoas entraram. Pagantes foram 112.403; 20 mil pegaram carona.

A renda daquele dia foi de Cr$ 525.419,00. Fazendo um exercício matemático e financeiro, o dólar no dia do jogo estava por volta de Cr$ 4,86. Então, a renda, em dólares, seria US$ 108.110,90. Dividindo-se esse valor pelo público pagante de 112.403, temos um valor médio de US$ 0,96 dólar o ingresso. Viajando pelo tempo até o recente jogo entre Fluminense e Cruzeiro, o da volta olímpica pela conquista do tetracampeonato, para traçarmos um paralelo com os dias atuais, podemos fazer os mesmos cálculos: dividindo R$ 862.110,00 (renda) por R$ 2,09 (valor do dólar nestes dias atuais), teríamos, em dólares, US$ 412.492,82. Dividindo-se novamente pelo público de 35.167, chegamos à média de US$ 11,73 dólares o ingresso.

Caro ou barato, não importa, o que o torcedor tricolor queria era o título e ele veio. Veio, mais uma vez, pela cabeça, pelo oportunismo e pela estrela de Mickey. Waldir Amaral narrou assim:

“Avança Didi, cruzou na área, cabeceou Mickey é gooooooooool, gooooooooooooool do Fluminense. Mickey, Mickey, Mickey escorando o centro do jogador Didi pela direita. Mickey, com a camisa que tem cheiro de gol. É uma tempestade de bandeiras tricolores. Fluminense, a um passo de se tornar campeão da Taça de Prata, campeão do Brasil. Fluminense o time mais regular do Brasil em 1970. Mickey, 9, é camisa dele, indivíduo competente o Mickey. Tem peixe na rede do Atlético Mineiro. Mario Vianna!

– Goooooooooool Legalllllll!”

Mickey corre com os braços levantados, com os dedos de ambas as mãos fazendo o V. O V da vitória. Um gesto que provocou certo desconforto no ar. Setores da ditadura interpretaram aquilo como uma provocação ao regime, mas o futebol engoliu a intolerância.

Mickey era um predestinado. Quem poderia imaginar que o rapaz desconhecido, recém-chegado, ridicularizado pelas suas orelhas de abano, causa do apelido, substituiria um ídolo, um dos maiores artilheiros de todos os tempos, e marcaria quatro gols em quatro jogos consecutivos? Que levaria o grande Fluminense, o enorme Fluminense de Nelson Rodrigues ao seu primeiro título de envergadura nacional?

Contra o Palmeiras, Mickey, de cabeça, havia marcado aos 34’ do primeiro tempo. No jogo seguinte, Cruzeiro, marcou aos 35’, também na etapa inicial, novamente de cabeça. No jogo final, Mickey balançou, numa cabeçada entre os zagueiros atleticanos, as redes alvinegras aos 33’. Além de predestinado, o novo ídolo tinha algum pacto com a forma e com o relógio.

FICHA TÉCNICA

FLUMINENSE 1X1 ATLÉTICO-MG, Maracanã, 20/12/1970.

FLUMINENSE: Félix; Oliveira, Galhardo, Assis e Marco Antônio (Toninho); Denilson e Didi; Cafuringa, Mickey, Cláudio Garcia e Lula. Técnico: Paulo Amaral.

ATLÉTICO: Renato; Nélio (Zé Maria), Humberto Monteiro, Vantuir e Vanderlei; Odair e Humberto Ramos; Ronaldo, Vaguinho, Lola e Tião. Técnico: Telê Santana.

GOLS: Mickey aos 33’ do 1° tempo; Vaguinho aos 2’ do 2º tempo.

ÁRBITRO: José Favilli Neto.

RENDA: Cr$ 525.419.00

PÚBLICO: 112.403 Pagantes. (Publicou O Estado de São Paulo, de 22/12/1970, pág.32: mais de 130.000 pessoas – 112.403 que pagaram ingressos e mais de 20 mil que entraram de graça).

1970 – Parte I: http://www.panoramatricolor.com/1970-parte-i-por-mauro-jacome/

1970 – Parte II: http://www.panoramatricolor.com/1970-parte-ii-por-mauro-jacome/

1970 – Parte III: http://www.panoramatricolor.com/1970-parte-3-por-mauro-jacome/


Mauro Jácome

Panorama Tricolor

@PanoramaTri

Contato: Vitor Franklin

Revisão prévia: Rosa Jácome

Colaboração: Alexandre Magno Barreto Berwanger

Fontes de pesquisa: Acervo da Folha de São Paulo: (http://acervo.folha.com.br); Acervo do Jornal do Brasil (http://news.google.com); Wikipédia

5 Comments

  1. Relato fantástico, realista e que nos remete para àquela época. Parabéns pelo belo trabalho de pesquisa e requintado texto. Como já tive oportundide de dizer-lhe: “digno de Nélson Rodrigues”.

    1. Obrigado, Márcio. Sempre gostei de contextualizar o futebol. Aliás, tendo em mente algum conhecimento da linha do tempo, fica mais fácil entender os fenômenos. Pretendo pesquisar 1984. O Bi.

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